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29/05/2015  - Márcio Friggi, o promotor que buscou a justiça para o Massacre do Carandiru
 
Antônio Rodrigues de Lemos Augusto – Confraria do Júri

O rapaz tinha pouco mais de 20 anos e se preparava para entrar em um ônibus, na Grande São Paulo. Ele queria roubar o dinheiro do trocador e comprar leite para as crianças de sua casa. Ele não poderia imaginar que seria vítima do maior massacre penitenciário da história do mundo cerca de um mês depois...

Cento e onze presos foram mortos no massacre da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, em 1992, na capital paulista. O promotor de Justiça Márcio Augusto Friggi de Carvalho, responsável pelo Júri que levou os policiais militares envolvidos na chacina ao banco dos réus, esteve em Cuiabá dia 22 de maio, para ministrar o “Minicurso sobre Tribunal do Júri”. Uma parte da palestra de Márcio foi justamente sobre os preparativos para enfrentar o julgamento, considerado o maior júri do país pela imprensa. A outra parte do evento, promovido pelo Ministério Público Estadual e pela Confraria do Júri, enfatizou aspectos práticos sobre a ação do promotor no júri (clique aqui e acesse a reportagem).



Voltando ao rapaz no começo da história, ele foi preso em flagrante, dentro do ônibus, ao roubar o equivalente hoje a doze reais. Foi preso provisoriamente e denunciado pelo Ministério Público. Na própria denúncia transparecia a finalidade famélica do crime. Este rapaz estava no primeiro andar do Pavilhão 9 do Carandiru e morreu com vários tiros. O sangue dele e dos demais mortos, misturado a óleo e à agua dos encanamentos estourados pela ação policial, chegava à canela de uma pessoa adulta nos corredores do pavilhão após a chacina.

Márcio Friggi ressalta: todos os presos mortos eram pobres, a maioria negros e envolvidos em crimes de pequenos roubos ou furtos. Salvo exceções, não eram presos perigosos. Muitos tinham direito à progressão de pena para o regime aberto ou semiaberto, mas – em razão – do descalabro que é a assistência judiciária dentro do sistema carcerário, continuavam no regime fechado. Morreram.

E como morreram? A perícia mostrou.

Mostrou que foram sumariamente fuzilados. Muitos estavam sobre o beliche e foram atingidos com tiros de baixo para cima, que perfuraram os estrados, atingindo-os. A imensa maioria levou mais de um tiro, principalmente na cabeça. Houve rajadas de metralhadoras em um espaço de corredor de apenas três metros de largura, em ambiente escuro e esfumaçado. E a perícia afirmou: não houve nenhum tiro que partiu dos presos em direção aos policiais.

Na chacina, quem contou a história correta para a Justiça foram as paredes. A Polícia Militar desfez, o quanto pode, o cenário do massacre. Tentou impedir a entrada do perito. O perito, na primeira vez que foi ao local, logo após o massacre, só conseguiu entrar escondendo-se dentro do carro de um delegado. E já encontrou os corpos retirados do local das mortes e empilhados. Conseguiu apenas fazer algumas fotos. Voltou dois ou três dias depois e o lugar estava todo lavado. Qual a melhor saída para o perito? Conformar-se? Não.

A melhor saída foi periciar os buracos nas paredes, nas portas, nas camas. Descobrir quais buracos eram efetivamente de balas e quais não eram. O perito, bastante elogiado pelo promotor de Justiça Márcio Augusto Friggi de Carvalho, fez teste residuográfico em cada orifício desses, dezenas e dezenas. E conseguiu mapear os tiros dados, suas trajetórias, o tipo de armamento utilizado... Esta perícia foi conclusiva para esmagar a tentativa da PM de plantar armas de fogo no lugar.

Sim: treze armas de fogo apareceram como sendo dos presos. Mas a PM não sabia dizer o nome de quem apreendeu cada arma, onde estava cada arma apreendida, nada. Mas, fundamentalmente, a perícia demonstrou que não partiu, nos menos de 30 minutos do massacre, nenhum tiro dado pelos presos dessas armas ou de qualquer outra. As paredes, as portas, o madeirame das camas falaram sim e apontaram unanimemente que os autores dos tiros usavam fardas.

Mas a história de um processo envolvendo mais de cem policiais e pilhas e pilhas de folhas tem sua complexidade ímpar. Quem matou quem? Qual policial matou determinado preso? Como resolver a seara processual da denúncia? Qual foi o pulo do gato do Ministério Público para conseguir reverter um júri que se aparentava perdido?

Os réus foram divididos conforme o andar da penitenciária em que atuaram. Houve, assim, o júri dos policiais que invadiram o primeiro andar, o júri dos policiais que invadiram o segundo andar e assim por diante. Cada júri analisando apenas as vítimas daquele andar. Esta separação tornava viável o julgamento, mas não resolvia o que certamente seria o principal argumento de defesa: usualmente, é preciso individualizar a conduta do réu, para que ele responda efetivamente apenas pelos atos que cometeu. Trocando em miúdos, quem matou quem?

Esta individualização era impossível. Mas uma constatação contribuiu para que o Ministério Público começasse a encontrar o caminho de sua estratégia: todos os policiais que ingressaram nos andares do Pavilhão 9 dispararam tiros, sem exceção.

Esta constatação fortaleceu a possibilidade de se considerar o crime como sendo “de multidão”. Se todos atiraram, todos contribuíram igualmente para o resultado, todos tinham a mesma pretensão, todos queriam o mesmo fim: debelar rapidamente a rebelião, a qualquer custo, mesmo que o custo fosse a vida de 111 presos. Sim, crime de multidão, onde todos contribuíram com o resultado, com a imensa maioria dos presos recebendo mais de um tiro, com a imensa maioria dos tiros buscando áreas vitais, com a perícia provando que não houve qualquer resistência dos presos e com o uso até mesmo de metralhadoras em um ambiente fechado, escuro e esfumaçado...

Mas alguns policiais saíram feridos... Sim, atingidos por fogo amigo. O ânimo da invasão era tão escancarado que já na parede de entrada do Pavilhão havia marca de uma rajada de metralhadora.

A tese defendida pelo promotor Márcio Augusto Friggi de Carvalho é polêmica, ele admite. Mesmo dentro do Ministério Público, passou pelo crivo de intensos debates. Mas ele ressalta: a tese foi mantida por todas as esferas de análise jurídica por que passou dentro do Poder Judiciário. “Vejam, havia dois caminhos: ou me conformar e pedir absolvição de todos os policiais, pela impossibilidade de individualizar a conduta de cada um deles, ou buscar um caminho que desse, à sociedade, uma resposta para o massacre que ocorreu no Carandiru. Se o Ministério Público optasse em pedir a absolvição, haveria sim a possibilidade de construção de um argumento jurídico nesse sentido, em que a postura do promotor não poderia ser questionada tecnicamente. Mas eu optei em não me conformar”.

Tudo bem, já havia uma tese a ser defendida, havia uma perícia de qualidade sobre os tiros disparados, havia a vontade do Ministério Público em priorizar este júri... Mas e os jurados?

Pesquisas mostravam o quanto a sociedade estava dividida sobre o tema. Márcio sabia que enfrentaria o preconceito forte à população carcerária no julgamento e, por outro lado, teria que demonstrar que não estava julgando a PM-instituição, mas sim uma parcela de policiais que agiu de forma desonrosa. Uma parcela de policiais que carregava, nas costas, outras mortes em episódios anteriores, sempre com processos arquivados pela então Justiça Militar, que tinha a competência no passado e atuava de forma corporativa, no sentido pejorativo da palavra.

Nos dois primeiros julgamentos, em comum acordo com a defesa, foi aberta a possibilidade de cada parte apresentar um vídeo de até 30 minutos, tempo que não seria descontado do período de debates. E assim foi feito... E no Minicurso do Tribunal do Júri, dia 22 de maio, a plateia pode assistir ao vídeo de 28 minutos da acusação.

É um vídeo que embarga a voz, que quebra a versão de que a PM matou homens perigosos. Que mostra o perfil dos 111 assassinados. Que demonstra a efetiva covardia que aconteceu. E que relembra outros casos de violência policial gratuita, entre eles o episódio da “Favela Naval”: Quem não se lembra do policial Rambo?

Márcio ressalta que não houve qualquer questionamento, pela Defesa, sobre o conteúdo do vídeo apresentado, seja em relação à parte diretamente relacionada ao Carandiru, seja em relação aos demais episódios de violência policial listados. O material foi juntado aos autos no prazo legal. E o vídeo foi essencial para quebrar o possível preconceito dos jurados em relação às vítimas.

Após um dos julgamentos, Márcio conta que um dos jurados o abraçou e lhe disse: “Promotor, eu percebi que estou no perfil das vítimas de violência policial”. Dessa forma, julgamento por julgamento, análise das mortes andar por andar do Pavilhão 9, mais de 20 anos após o episódio, os réus foram sendo condenados. Os anos de 2013 e de 2014 entraram para a história da justiça criminal brasileira como aqueles em que a justiça foi feita em memória das vítimas do Carandiru.

Hoje, a Casa de Detenção do Carandiru não existe mais. Foi desativada em 2002, exatamente dez anos após o massacre. No lugar, atualmente, há o Parque da Juventude e a Biblioteca de São Paulo, bem como duas escolas técnicas. Curiosamente, em meado de dezembro de 2014, a banda de rock Titãs se apresentou para uma multidão no Parque da Juventude, em um sábado à tarde. E foi surreal quando tocou a música “Polícia”, feita nos anos 80. Os versos “Polícia para quem precisa, polícia para quem precisa de polícia” ecoaram alto no cenário que provocou uma das maiores discussões sobre a atuação policial no Estado brasileiro nos últimos anos.
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Nota: O Minicurso sobre Tribunal do Júri foi uma promoção da Associação dos Promotores do Júri (Confraria do Júri) e do Ministério Público Estadual, com apoio da Associação Mato-Grossense do Ministério Público (AMMP) e da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso (FESMP-MT). Clique aqui e leia a reportagem complementar do evento.

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