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04/09/2023  - Quando o patrimônio vale mais do que a vida
 
Isabella Luíza Alonso Bittencourt, juíza de Direito. Texto veiculado originariamente no site Migalhas - Clique aqui.

Resta saber quantas "Marias" e quantos "Josés" precisarão morrer injustamente, para que a sociedade entenda que honra e patrimônio não equivalem à vida de um ser humano.

No ano de 2023, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a tese defensiva de "legítima  defesa da honra" em casos de feminicídio. Esse foi um marco histórico, enquanto essa tese era utilizada, de forma odiosa e machista, para justificar a impunidade de crimes bárbaros contra mulheres. A mudança do entendimento jurisprudencial representa mais uma vitória conquistada pelas mulheres, no que se refere ao combate à violência baseada no gênero.

A tese da legítima defesa contra a honra ganhou visibilidade na década de 1970, no emblemático caso do feminicídio  da socialite Ângela Diniz, 32 anos. Na oportunidade, o advogado do seu ex namorado, Doca Street, se valeu dessa tese, para comover o júri e conseguir a absolvição do feminicida. A defesa, naquela época, também se beneficiou do discurso midiático, o qual apresentou a vítima como a "pantera de minas", a mulher sensual, fútil e egoísta, que seduzia e abandonava os homens. 

O argumento da legítima defesa contra a honra, mesmo naquela época, em razão de ser repugnante e abjeto, não foi aceito por diversas mulheres. Ocorreram diversas mobilizações sociais que desencadearam na anulação do júri e em um novo julgamento do ex namorado da vítima, que, dessa vez, foi condenado a 15 anos de prisão. 

No  início da década de 1980, outro caso emblemático trouxe à tona a gravidade da violência doméstica no Brasil. A senhora Maria da Penha Fernandes foi vítima da tentativa de  feminicídio por parte de seu, então, esposo. Mesmo com as consequências deixadas pela violência por ela sofrida, uma vez que ficou paraplégica, Maria da Penha ainda enfrentou uma árdua luta para ver seu agressor ser responsabilizado. Após dois júris serem anulados, Maria da Penha recorreu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para só assim ver o seu agressor ser responsabilizado. 

Ocorre que o caso Maria da Penha não foi uma situação isolada. Por essa razão, dentre as determinações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, havia a exigência do Brasil intensificar uma reforma para evitar a tolerância estatal e o tratamento discriminatório em relação à violência doméstica no país. Assim, em 7 de agosto de 2006, foi promulgada a Lei Maria da Penha, um importante marco histórico para a defesa do direito das mulheres.  

Embora haja diversos avanços na jurisprudência e na legislação ao longo desses anos, dentre eles, a declaração de inconstitucionalidade à legítima defesa da honra, ainda existe um lado obscuro da nossa sociedade, pois, no ano 2023,  é corriqueiro se deparar com pessoas que relativizam, justificam e respaldam a violência contra a mulher. Argumentos estereotipados ainda são utilizados no cotidiano forense, por advogados que justificam o estupro pela roupa utilizada pela mulher, que defendem o feminicídio em virtude da honra do homem.  

Recentemente, no município de Minaçu/GO, ocorreu um júri que evidenciou os recalques de uma sociedade patriarcal. Tratava-se de um homicídio do atual namorado da ex-companheira do acusado, associado ao furto da moto da vítima, utilizada para fuga. Na ocasião, foi aventada a tese da legítima defesa contra a honra, sendo devidamente esclarecido ao conselho de sentença da impossibilidade de utilizá-la. Não obstante, o plenário do júri entendeu pela absolvição por clemência, ou seja, reconheceram que ele cometeu o homicídio, mas que não merecia a aplicação de uma pena. Por sua vez, em relação ao crime patrimonial, esse mesmo plenário do júri entendeu por bem condenar esse acusado.

Não se está aqui a criticar a instituição do Tribunal do Júri, que é uma forma de democratizar a meritocracia do poder judiciário e permitir a população de participar dos julgamentos. O que se pretende evidenciar é a necessidade de mudanças efetivas dentro da própria sociedade. Ora, esse julgamento citado nada mais é do que o reflexo dos pensamentos que prevalecem na sociedade brasileira, em que, quando se trata de uma suposta traição amorosa, o bem jurídico vida possui um valor inferior a um objeto material e parece se tornar algo disponível para que dentro da sociedade patriarcal o homem possa defender a sua honra.

Desse modo, evidencia-se que ainda que ocorram mudanças dentro da jurisprudência ou mesmo na legislação para defender a vida e a liberdade da mulher, elas não serão efetivas se não vierem associadas a políticas públicas que conscientizem a população e promovam mudanças de pensamento dentro de uma sociedade enraizada por ideologias do patriarcado. Enquanto essas transformações não forem promovidas, o Supremo Tribunal Federal até pode determinar a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa contra a honra, por considerá-la como um argumento odioso e machista mas, mesmo assim, diversos acusados continuarão a ser absolvidos, de forma injusta, com respaldo nesse argumento.

Resta saber quantas "Marias" e quantos "Josés" precisarão morrer injustamente, para que a sociedade entenda que honra e patrimônio não equivalem à vida de um ser humano.

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