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10/05/2021  - Da recorribilidade das decisões absolutórias genéricas do Tribunal do Júri – uma análise da soberania dos veredictos
 
Manoel Torralbo Gimenez Júnior, promotor de Justiça do II Tribunal do Júri de São Paulo. Pós-Graduado em Criminologia pela PUC Minas. Autor do livro “Homicídio: um estudo jurídico-criminológico” - Edições APMP (2009)

Sumário: I. Introdução. II. Da clemência. III. Do quesito absolutório genérico. IV. Da soberania dos veredictos. V. Conclusões.

I. Introdução

No Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.225.185-MG, julgado em 07 de maio de 2020, sendo Relator o Ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a existência de repercussão geral (Tema 1087) da questão constitucional suscitada na seguinte questão-problema:

a realização de novo júri, determinada por Tribunal de 2º grau em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico (art. 483, III, c/c §2º CPP), ante suposta contrariedade à prova dos autos (art. 593, III, d, CPP), viola a soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, c, CF)?

Referido acórdão ficou assim ementado:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI E SOBERANIA DOS VEREDICTOS (ART. 5º, XXXVIII, C, CF). IMPUGNABILIDADE DE ABSOLVIÇÃO A PARTIR DE QUESITO GENÉRICO (ART. 483, III, C/C

§2º, CPP) POR HIPÓTESE DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS (ART. 593, III, D, CPP). ABSOLVIÇÃO POR CLEMÊNCIA E SOBERANIA DOS VEREDICTOS. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.


Desde a Constituição democrática de 1946, que manteve a instituição do júri, assegurando, entre outros princípios essenciais à sua existência, a soberania dos veredictos, essa garantia fundamental era perfeitamente harmonizada com a possibilidade de manejo do recurso de apelação fulcrado nas decisões manifestamente contrárias às provas dos autos proferidas pelos jurados, sendo o novo julgamento realizado pelo próprio Tribunal do Júri, permitindo-se a anulação somente uma vez por esse mesmo motivo.

Com a incorporação da Lei nº 11.689/08 ao nosso ordenamento jurídico, que reformulou integralmente o procedimento dos crimes dolosos contra a vida, de competência do tribunal popular, foi introduzido no nosso sistema processual, diante da simplificação da quesitação, o denominado quesito absolutório. Formou-se, então, entendimento, por parcela da doutrina e da jurisprudência, de que o jurado estaria autorizado a absolver o acusado por qualquer motivo, inclusive de natureza extrajurídica, como a clemência.

Este estudo pretende, com a realização da análise do instituto da clemência, das razões da introdução em nosso sistema processual do quesito absolutório genérico e do alcance da soberania dos veredictos e de sua relação com os demais direitos e garantias fundamentais, trazer elementos que possibilitem oferecer uma resposta à questão-problema suscitada pelo Supremo Tribunal Federal.

II. Da clemência

Relevante, em um primeiro momento, proceder à análise do instituto da clemência, para perscrutar se o poder decisório conferido pela Constituição Federal aos juízes populares é de tal magnitude, a ponto de permitir o julgamento da causa sem o acolhimento de uma tese jurídica.

A clemência não encontra guarida em nosso ordenamento jurídico como tese absolutória. Poderia argumentar-se que ela se inspira nas formas de clemência do Estado, que, tendo origem na clemência ou indulgência soberana, manifestam-se através de institutos positivados - anistia, graça, indulto e perdão judicial - e exprimem renúncia ao direito soberano de punir.

A anistia abrange fatos e é concedida por meio de lei federal; a graça, também conhecida como indulto individual, é concedida por meio de decreto emanado do Presidente da República a um condenado específico, por provocação desse; o indulto (coletivo), espécie do gênero graça, também é concedido por decreto do Presidente da República, mas por sua iniciativa e a um número indeterminado de condenados; o perdão judicial, por fim, é da competência do juiz, que só pode concedê-lo nos casos expressos previstos em lei, não havendo, como de amplo conhecimento, previsão para os crimes dolosos contra a vida (em tese, cumpridos todos os requisitos previstos, poderia figurar como prêmio em um acordo de colaboração premiada, mas não em todas as suas figuras típicas).

Esses institutos têm definidos suas características, requisitos de concessão e poder concedente, tendo na clemência seu fundamento, não se esgotando nela como conceito abstrato e vago. São causas de extinção da punibilidade, não pertencendo, portanto, à teoria do crime, sequer sendo da competência do juiz popular, mas do Juiz Presidente do Conselho de Sentença, conforme dispõe o artigo 497, inciso IX, do Código de Processo Penal.

Não se pode olvidar que o artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, veda a concessão de graça e anistia aos crimes hediondos e equiparados e que o homicídio qualificado está no rol dos crimes hediondos.

A punibilidade das condutas criminosas (típicas, ilícitas e culpáveis) é a regra no Estado Democrático de Direito. As exceções devem ser previstas expressamente, para dar segurança e estabilidade ao sistema.

Assim, não colhe o argumento da aplicação da clemência, sem conceituação e delimitação legal, por analogia, pois não há lacuna no sistema, vez que ele disciplinou as causas excepcionais, como deveria, mesmo, ter feito. As causas extintivas da punibilidade são excepcionais, portanto, insuscetíveis de integração por meio da analogia.

As causas não previstas na legislação penal pátria não são produto do esquecimento e da não possibilidade de previsão de todos os comportamentos humanos, mas sim o foram deliberadamente. Pensamento contrário negaria sistematização ao Direito Penal.

O Professor Miguel Reale pontifica que: “Ainda no tocante à analogia cumpre advertir que ela não tem emprego em todos os domínios do Direito, sendo inadmissível, em princípio, quando se tratar de regras de caráter penal, ou se as normas forem restritivas de direitos ou abrirem exceções” (Lições Preliminares de Direito, 17a edição, Editora Saraiva, pág. 294).

Esse também o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. HOMICÍDIO CULPOSO. PERDÃO JUDICIAL PREVISTO NO CÓDIGO PENAL. ANALOGIA. INAPLICABILIDADE. LACUNA LEGAL INEXISTENTE.

1. A analogia, ainda que in bonan partem, pressupõe lacuna, omissão na lei, o que não se verifica na hipótese, em que é evidente no Código Penal Militar a vontade do legislador de excluir o perdão judicial do rol de causas de extinção da punibilidade.

2. Ainda que fosse o caso de aplicação da analogia, necessário seria o exame do conjunto fático-probatório para perquirir a gravidade ou não das consequências do crime para o paciente, o que é inviável na via estreita do writ.

3. Ordem denegada. (STF, Primeira Turma, HC nº 116.254-SP, Relatora Ministra Rosa Weber, julgamento em 25 de junho de 2013).


No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS. SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. PERDÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS NÃO

CONHECIDO

1. Diante da hipótese de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração não deve ser conhecida, segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e deste Superior Tribunal de Justiça. Contudo, ante as alegações expostas na inicial, afigura-se razoável a análise do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal.

2. Estipula o Código Penal, em seu art. 107, inciso IX, que se extingue a punibilidade "pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei". Desse modo, somente será possível a aplicação do instituto se houver expressa previsão legal para a hipótese em comento. In casu, o voto minoritário do colegiado a quo foi proferido no sentido da aplicabilidade do instituto do perdão judicial à espécie, "nos termos do art. 129, § 8º, combinado com o art. 121, § 5º, do Código Penal".

De fato, ainda que o Código de Trânsito não preveja expressamente hipóteses de perdão judicial, entende-se que o diploma admite a aplicação analógica do instituto aos delitos de homicídio e lesão corporal, ambos na modalidade culposa, por inteligência das razões de veto apostas ao diploma. Na espécie, todavia, o delito de trânsito imputado ao paciente é o de condução de veículo automotor sob influência de álcool, para o qual não se encontra previsão legal de aplicação do perdão judicial

Habeas corpus não conhecido (STJ, HC nº 359.018-RS, Relator Ministro Joel Ilan Paciornik, julgamento em 27 de setembro de 2016).


O Ministro Edson Fachin, em voto proferido no dia 08 de março de 2021, na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 779-DF, assentou que “a decisão do júri não pode implicar a concessão de perdão a crimes que nem mesmo o Congresso Nacional teria competência para perdoar”.

Destarte, erigida a clemência a fundamento absolutório nos julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri, além de negação à cientificidade do Direito Penal, haverá desrespeito aos princípios da independência dos Poderes e da legalidade, tão caros ao Estado Democrático de Direito.

Nesse passo, digna de nota a advertência de Cesare Beccaria, já no século XVIII:

... a clemência é virtude do legislador e não do executor das leis, que resplandecem no Código e não nos julgamentos particulares . . . Que dizer, então, do príncipe que outorga a graça, ou seja, a segurança pública a um particular e que, com um ato privado de benevolência não esclarecida, edita decreto público de impunidade? (Dos delitos e das penas, 2ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 136/137).

III. Do quesito absolutório genérico

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, reconhece a instituição do júri, com a organização dada pela lei, sendo assegurados a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

A Constituição democrática de 1946, no capítulo referente aos direitos e garantias individuais, manteve a instituição do júri, em redação quase idêntica ao texto constitucional de 1988, assegurando-lhe os mesmos princípios:

Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 28 - É mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude da defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.


Visando à adequação do Código de Processo Penal, de 1941, ao novo texto constitucional, foi promulgada a Lei nº 263, de 23 de fevereiro de 1948, que alterou alguns de seus dispositivos, para estabelecer a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida e prever o procedimento para a formulação do questionário e o recurso de apelação.

Referida lei, por permitir que o Tribunal de Justiça anulasse as decisões populares manifestamente contrárias às provas dos autos (por uma vez, pois não admite segunda apelação por esse mesmo motivo) teve questionada sua constitucionalidade, por desrespeito à soberania dos veredictos, sendo objeto de histórico julgamento, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, em 19 de novembro de 1952, assim ementado:

Não é inconstitucional a lei 263 de 1948, que permite ao Tribunal de Justiça anular a decisão do Júri, quando manifestamente contrária a prova dos autos.

Se o Tribunal de Justiça, ao julgar a apelação, com o conhecimento integral da prova dos autos, concluiu ser contrária a evidência desta a decisão do júri, não e possível, em habeas-corpus, decidir em sentido oposto. (STF, HC nº 32.271-SP, Relator Ministro Luiz Gallotti).


Nesse julgamento, o saudoso Ministro Nelson Hungria, o mais notável penalista brasileiro, proferiu voto, no sentido da constitucionalidade da referida Lei nº 263:

Sr. Presidente, o ilustre advogado do impetrante argui dois motivos: um, já velho e batido, de que a Lei n. 263 é inconstitucional, quando manda o réu a novo júri, porque o preceito constitucional, determinando a soberania absoluta do tribunal popular, não comporta a duplicidade de julgamento ou um segundo julgamento por outro conselho de sentença.

Já fui daqueles que adotaram esse ponto de vista, mas o reexame da matéria me convenceu de que não havia nessa duplicidade uma ofensa ao princípio constitucional da anacrônica soberania do Júri, uma vez que o segundo julgamento era devolvido ao próprio tribunal de jurados, que, assim, seria o único a rever sua própria decisão.


Assim, desde a edição da Lei nº 263, de 1948, firmou-se consenso na doutrina e jurisprudência pátrias a célebre definição do saudoso José Frederico Marques acerca do significado da soberania dos veredictos no Tribunal do Júri:

“Soberania dos veredictos” é uma expressão técnico-jurídica que deve ser definida segundo a ciência dogmática do processo penal e não de acordo com uma exegese de lastro filológico, alimentada em esclarecimentos vagos de dicionários.

Se soberania do júri, no entender da communis opinio doctorum, significa a impossibilidade de outro órgão judiciário substituir o júri na decisão de uma causa por ele proferida, soberania dos veredictos traduz, mutatis mutandi, a impossibilidade de uma decisão calcada em veredicto dos jurados ser substituída por outra sentença sem esta base. Os veredictos são soberanos porque só os veredictos é que dizem se é procedente ou não a pretensão punitiva. (Elementos de Direito Processual Penal, Volume III, 1997, Campinas, Editora Bookseller, pág. 238).


Nesse mesmo sentido, o renomado processualista Fernando da Costa Tourinho Filho, ao explicar o que se entende por soberania dos veredictos:

Obviamente, para o nosso CPP, não significa, nem traduz, uma onipotência desenfreada e descomedida. E tanto isso é exato que, embora os legisladores constituintes de 1946 houvessem proclamado a soberania das decisões do Júri, eles mesmos, quando alteraram o CPP, na parte atinente à instituição dele, para adaptá-lo às exigências constitucionais, por meio da Lei n. 263, de fevereiro de 1948, deixaram claro que, se a decisão dos jurados for manifestamente contrária às provas dos autos, poderá o juízo ad quem, desde que provocado, determinar a realização de novo julgamento. Não permitiram, em nenhum caso, pudesse a instância superior reexaminar a causa e proferir a decisão adequada. Autorizaram ao Tribunal ad quem corrigir as distorções, quando o erro partir do Presidente do Júri. Jamais quanto ao pronunciamento do Conselho de Sentença.” (Processo Penal, 4o Volume, 14a edição, 1993, São Paulo, Editora Saraiva, págs. 56/57).

Em abono a essa reflexão, entendendo que o exercício da soberania dos veredictos não se reveste de um poder incontrastável e ilimitado, já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal:

“A soberania dos veredictos do Júri – não obstante a sua extração constitucional – ostenta valor meramente relativo, pois as decisões emanadas do Conselho de Sentença não se revestem de intangibilidade jurídico-processual. A competência do Tribunal do Júri, embora definida no texto da Lei Fundamental da República, não confere, a esse órgão especial da Justiça comum, o exercício de um poder incontrastável e ilimitado. As decisões que dele emanam expõem-se, em conseqüência, ao controle recursal do próprio Poder Judiciário, a cujos Tribunais compete pronunciar-se sobre a regularidade dos veredictos. A apelabilidade das decisões emanadas do Júri, nas hipóteses de conflito evidente com a prova dos autos, não ofende o postulado constitucional que assegura a soberania dos veredictos do Tribunal Popular” (STF – 1ª T. - HC nº 70.193-1/RS – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 6, nov. 2006, p. 37).

A esse respeito, clássica a lição do também saudoso Desembargador paulista Adriano Marrey:

... não são os jurados ‘onipotentes’, com o poder de tornar o quadrado redondo e de inverter os termos da prova.

Julgam eles segundo os fatos objeto do processo; mas, exorbitam se decidem contra a prova. Não é para facultar-lhes a sua subversão que se destina o preceito constitucional.” (Teoria e Prática do Júri, 6ª edição, 1997, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, pág. 66).


O artigo 482, caput, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.689/08, dispõe que: “O Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido.”

O mesmo diploma legal consigna, em seu artigo 483, § 2º, que, respondidos afirmativamente, por mais de três jurados, os quesitos relativos à materialidade do fato e à autoria ou participação (artigo 483, incisos I e II, do Código de Processo Penal), será formulado, na sequência, quesito com a seguinte redação: “O jurado absolve o acusado?”

Todas as teses absolutórias, sem individualização, devem estar contidas nesse quesito, conforme entendimento uniforme da doutrina e da jurisprudência. De recordar, por oportuno, que o objetivo da ampla reforma operada no rito do Tribunal do Júri, em 2008, no que se refere ao questionário, foi de simplificá-lo, torná-lo mais objetivo, pois, de fato, antes da reforma era por demais complexa a quesitação, sendo causa de anulações de inúmeros julgamentos populares, por defeitos na sua formulação.

Portanto, a mens legis, na implementação do quesito genérico absolutório, não foi a de potencializar a soberania dos veredictos, para viabilizar o julgamento da causa por razões metajurídicas. Valiosos, nesse ponto, os esclarecimentos do Professor René Ariel Dotti, relator do Anteprojeto original da reforma do júri e membro da Comissão Redatora desde 1992 até 2000:

Com a finalidade de libertar os jurados do tormento bíblico do questionamento complexo que é imposto há mais de sessenta anos pelo atual sistema aos jurados, ao Juiz togado, ao agente do Ministério Público, ao defensor, ao escrivão e aos Oficiais de Justiça, a minha proposta, na condição de relator, acolhida pelo Projeto de Lei n.º 4.900, de 1995, continha apenas 3 (três) quesitos essenciais, na seguinte ordem: A materialidade do fato; A autoria (ou participação); Se o réu deve ser condenado (art. 483, incisos I, II e III). Sendo negativa a resposta a qualquer um deles, a votação estará encerrada e o caso julgado, com a absolvição. Afirmando que o réu deve ser condenado, o Júri passaria a deliberar sobre: se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia (art. 483, incisos IV e V).

(...)

Ao prever, como primeira hipótese de resposta, “se o acusado deve ser condenado”, adotei um critério de simetria com a denúncia ou queixa e com as alegações finais do processo e julgamento dos crimes de competência do juiz singular.

(...)

Uma dúvida razoável surgiu ao tempo da discussão do Anteprojeto. Consistia ela na ponderação de que a presunção de inocência, constitucionalmente garantida, oporia-se à redação do quesito indagando primeiramente se “o acusado deve ser condenado”.

Mas a minha proposta ficou vencida em face das razoáveis ponderações fundadas no princípio constitucional da presunção de inocência. E, fora dos trabalhos da comissão, o magistério de Silva Franco foi decisivo para a atual redação do inciso III do art. 483 do Código de Processo Penal, com a redação determinada pela Lei n.º 11.689/08: “se o acusado deve ser absolvido.”

É oportuno transcrever as ponderações do ex-Desembargador e atual Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), sobre a mudança radical da quesitação. Em sua conferência proferida no VII Simpósio Nacional de Direito Penal e Processual Penal, realizado pelo Instituto de Estudos Jurídicos, de 9 a 11 de junho de 1994, em Curitiba: “Em resumo, torna mais operacional, e menos vulnerável a nulidades, a atuação do Tribunal do Júri. As vantagens em relação à situação atual são patentes. É certo que a proposta inovadora, que traz a marca do notável jurista paranaense René Ariel Dotti, provoca reações. Algumas desfavoráveis e a meu ver até procedentes, como a de James Tubenchlak (ob. cit. p. 170) quando ao referir-se ao terceiro quesito observa que seria mais razoável redigi-lo em sintonia com o princípio constitucional da presunção de inocência. Por que, ao invés da indagação: “se o acusado deve ser condenado?”, não se propõe a pergunta: “''se o acusado deve ser absolvido?”. Antes de tudo porque se estabelece uma relação correta com o princípio constitucional já referido. Depois, porque, na psicologia do homem comum, é mais fácil pronunciar um sim do que um não e o jurado é, sem dúvida, um popular, não um técnico. Não são, por acaso, freqüentes as situações em que se tende para não manter discussão, ou porque não se entendeu os seus termos, dar, ao interlocutor, uma resposta afirmativa para pôr termo ao assunto? Não se correria o risco, diante do quesito proposto no projeto, de formular-se uma resposta sim por ser ela mais confortável? Já, se a indagação for no sentido de ser o acusado absolvido, o não corresponderia, por certo, a uma convicção firme e deliberada do jurado e romperia qualquer possibilidade de uma decisão acomodada. O não mais que o sim sinaliza uma resposta intimamente motivada” (Um novo e democrático tribunal do júri - Parte VI, sendo esse artigo originariamente veiculado no jornal O Estado do Paraná, em 20/07/2008; disponível em: http://www.confrariadojuri.com.br/artigos/artigos_view2.asp?cod=34; acesso em 21/10/2017).


IV. Da soberania dos veredictos

A instituição do júri está inserida no Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos -, do Título II da Carta Magna – Dos Direitos e Garantias Fundamentais.

No mesmo título da Lei Maior, aqui invocado, em seu artigo 5º, caput, é consagrado que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Garante o texto constitucional a igualdade de direitos dos cidadãos perante a lei e a inviolabilidadade do direito à vida.

Os direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Maior não são absolutos nem ilimitados, não podem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma sistemática, buscando-se equilíbrio e harmonia entre eles. Jamais a colisão. Essa a lição do Ministro Alexandre de Moraes:

Os direitos humanos fundamentais não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).

Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas.” (Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 7ª edição, 2007, São Paulo, Editora Atlas, págs. 101/102).


Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal:

Nesses casos, que sob um primeiro ângulo poderiam ensejar verdadeiras arbitrariedades pelo intérprete, ao optar, em voluntarismo, pela norma que lhe parecesse merecedora de maior prestígio, impõe-se, como ensina a novel teoria da interpretação constitucional, a harmonização prudencial e a concordância prática dos enunciados constitucionais em jogo, a fim de que cada um tenha seu respectivo âmbito de proteção assegurado, como decorrência do princípio da unidade da Constituição. Em outras palavras, cabe ao intérprete conciliar as normas constitucionais cujas fronteiras não se mostram nítidas à primeira vista, assegurando a mais ampla efetividade à totalidade normativa da Constituição, sem que qualquer de seus vetores seja relegado ao vazio, desprovido de eficácia normativa. (Nesse sentido é a abalizada doutrina nacional, v.g.: José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 672-700; Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 493-530; Luís Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 343-365, dentre outros).

Todo esse caminho lógico a ser percorrido para a harmonização de comandos normativos indicando soluções opostas demanda do aplicador da Constituição a reconstrução do sistema de princípios e de regras exposto no seu texto, guiado por um inafastável dever de coerência. E é somente quando essa tentativa de definição dos limites próprios a cada norma fundamental se mostrar infrutífera, já que sobrepostos os respectivos âmbitos de proteção, que cabe ao intérprete fazer o uso da técnica da ponderação de valores, instrumentalizada a partir do manuseio do postulado da proporcionalidade, a fim de operar concessões recíprocas, tanto quanto se faça necessário, entre os enunciados normativos em jogo, resguardado, sempre, o núcleo essencial de cada direto fundamental. E por não ser lícito, mesmo nessas hipóteses, a ablação da eficácia, em abstrato, das normas constitucionais, o resultado do método ponderativo há de ser o estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios em jogo, identificando-se o peso prevalecente de uma das normas com o devido balizamento por parâmetros interpretativos que reduzam a arbitrariedade e estimulem a controlabilidade intersubjetiva do processo decisório.

(...).

Desse modo, em se constatando aparente conflito de princípios constitucionais, há que se buscar uma correta ponderação que leve a um equilíbrio entre eles, mantendo assim uma racionalidade, controlabilidade e proporcionalidade na interpretação constitucional que deve ser dada ao caso. (STF, Mandado de Segurança nº 26.750-DF, Relator Ministro Luiz Fux, julgamento em 11 de novembro de 2013).


Consoante os ensinamentos acimas transcritos, a soberania dos veredictos deve harmonizar-se com a igualdade de todos perante a lei e a inviolabilidade do direito à vida, sendo por esses direitos limitada.

Disso resulta que os jurados, no exercício da soberania de suas decisões, não devem favorecer ou prejudicar qualquer cidadão que seja submetido ao seu julgamento, sob pena de desrespeito ao princípio da igualdade de todos perante a lei.

Outrossim, sendo competentes para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida – cuja objetividade jurídica, a vida, é consagrada como direito inviolável -, devem os jurados proceder ao julgamento de molde a respeitar e valorizar esse direito, sendo responsáveis, ademais, pela sua efetivação.

Nesse sentido, o saudoso Desembargador Adriano Marrey, na preciosa obra escrita em conjunto com Alberto Silva Franco e Rui Stoco:

Em termos atuais – deve o preceito relativo à instituição do Júri ser compreendido em consonância com os demais da Lei Magna. Se nesta se garante a ‘inviolabilidade do direito à vida’ (art. 5º, caput), torna-se incompatível a decisão que absolva o homicida confesso, ou provadamente autor da morte, infringindo-se aquele dispositivo, que garante o respeito à vida.

Ponderou, em parecer, o douto Prof. José Frederico Marques, “se o Júri, em crime doloso contra a vida, decide contra a prova dos autos de modo manifesto, absolvendo o réu, o direito à vida, um dos direitos fundamentais da pessoa humana, não estará sendo assegurado, mas, ao contrário, rudemente atingido, com o perigo evidente de tornar a proteção à vida um puro mito ou autêntica ficção.” (obra citada, págs. 67/68).


O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio de sua 13ª Câmara de Direito Criminal, afirmou que a soberania dos veredictos, por não ser um princípio ilimitado, não pode sobrepor-se ao direito à vida:

E não se alegue que os Jurados decidiram imbuídos do sentimento de piedade ou qualquer outro motivo metajurídico, absolvendo o réu arbitrariamente, sem qualquer fundamento discutido em plenário.

Como cediço, “o princípio constitucional da soberania dos veredictos não é intangível e ilimitado (como, aliás, todo e qualquer direito e garantia constitucional) e não pode se sobrepor ao direito à vida, sob pena de sua proteção converter-se em pura retórica vazia”, ensina Walfredo Cunha Campos (“Tribunal do Júri, Teoria e Prática”, Editora Atlas, pág. 233). (TJSP - Apelação nº 9000003-28.2002.8.26.0001, da Comarca de São Paulo, Relator Desembargador França Carvalho, em 20 de setembro de 2012).


Como decidido pelo Supremo Tribunal Federal, “o princípio da proporcionalidade, implicitamente consagrado pelo texto constitucional, propugna pela proteção dos direitos fundamentais não apenas contra os excessos estatais, mas igualmente contra a proteção jurídica insuficiente” (STF, Plenário, Questão de Ordem na Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 966.177-RS, Relator Ministro Luiz Fux, julgamento em 07 de junho de 2017).

Assim, o direito à vida, pressuposto de todos os demais direitos fundamentais, não pode receber proteção deficiente da legislação nem em sua interpretação.

Verificamos, assim, ser relativo o conceito de soberania dos veredictos, não traduzindo, de forma alguma, poder absoluto, ilimitado, mas que deve harmonizar-se com os outros direitos fundamentais também previstos na Carta Magna, sendo nesse sentido a recente decisão unânime proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 779-DF, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, que, reconhecendo que “a vida é considerada o bem jurídico mais valioso do Direito, por opção inequívoca da Constituição de 1988”, tolheu dos juízes populares a possibilidade de proferir decisões absolutórias com base na tese de legítima defesa da honra, nestes termos:

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, referendou a concessão parcial da medida cautelar para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento, nos termos do voto do Relator. Os Ministros Edson Fachin, Luiz Fux (Presidente) e Roberto Barroso acompanharam o Relator com ressalvas. A ressalva do Ministro Gilmar Mendes foi acolhida pelo Relator. Falaram: pelo requerente, o Dr. Paulo Roberto Iotti Vecchiatti; pelo interessado, o Ministro José Levi Mello do Amaral Junior, Advogado-Geral da União; e, pelo amicus curiae Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica, a Dra. Eliana Calmon. Plenário, Sessão Virtual de 5.3.2021 a 12.3.2021.

Por outro lado, além das balizas constitucionais, já referidas, a lei que organiza a instituição do júri também traz parâmetros para o julgamento da causa pelos jurados. Relembremos o disposto no artigo 472 do Código de Processo Penal:

Art. 472. Formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e, com ele, todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação:

Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça.

Os jurados, nominalmente chamados pelo presidente, responderão:

Assim o prometo.


Dessa forma, a legislação ordinária ressalta que as decisões dos jurados devem ser imparciais, de acordo com suas consciências e os ditames da justiça. Impõe limites e fixa parâmetros aos julgadores populares.

Tendo que decidir com imparcialidade, devem os jurados despir-se de preconceitos, não podendo, outrossim, favorecer ou prejudicar indevidamente os réus submetidos a seu julgamento, mas sim proferir com isenção suas decisões, que devem ser o produto da detida análise das provas carreadas ao processo.

O Ministro Edson Fachin, no referido voto proferido na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 779-DF, observou que:

(...) Se é certo que o Tribunal do Júri guarda distinções em relação à atividade judicial típica, não deixa de ser também um julgamento, isto é, a aplicação de uma norma jurídica a um caso particular e, como tal, deve guardar um mínimo de racionalidade e de objetividade. A importante tarefa de julgar não pode ser um jogo de dados.

Decisão de acordo com as consciências dos julgadores leigos, só pode ser entendida como julgamento desprendido de qualquer influência externa, pois já foi visto que os jurados não têm poder ilimitado para decidirem como bem entenderem, tanto que devem fazê-lo seguindo os ditames da justiça, como os exorta, na sequência imediata, o texto infraconstitucional.

Aristóteles, na Antiguidade, ressaltava na justiça a marcante característica da proporcionalidade. Oswaldo Henrique Duek Marques, a propósito, leciona:

Para Aristóteles, ademais, a pena tinha por objetivo restabelecer a igualdade entre os indivíduos, violada pelo ato delituoso, dentro de uma proporção aritmética, entre justo e o injusto. Consoante sustenta em sua obra Ética a Nicômacos, o justo é a proporção e injusto o que viola a proporcionalidade. Assim, se uma pessoa infligiu as normais penais e a outra sofreu um dano, há uma injustiça pela desigualdade na proporção. Então, por meio da penalidade, o juiz tenta igualizar as coisas. . . O equilíbrio da Justiça, rompido pela prática do crime, deve ser restabelecido pela punição proporcional ao dano causado pelo agente. (Fundamentos da Pena, 2000, São Paulo, Editora Juarez de Oliveira, pág. 23).

Os romanos, com seu espírito prático, assim definiram a justiça: “Dar a cada um o que é seu”.

André Franco Montoro afirma que a consideração do direito como exigência da justiça, “é o significado fundamental do vocábulo direito”, para explicar, em seguida, que: “Os latinos o chamavam jus e não o confundiam com a lex. Nesse sentido, direito é propriamente aquilo que é ''devido'' por justiça a uma pessoa ou a uma comunidade. . . A essa acepção corresponde a expressão clássica: ''dar a cada um o seu direito''” (Introdução à Ciência do Direito, 21ª edição, 1993, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, págs. 123/124).

Santo Tomás de Aquino, citado pelo Desembargador Ricardo Dip, em primorosa obra escrita em coautoria com o saudoso Desembargador Volney Corrêa Leite de Moraes Jr., ponderava: “... diz-se que, num princípio, antes que se instituíssem as leis, em nada diferenciava fazer isto ou aquilo. Mas, uma vez instituídas as leis, as coisas mudaram, porque desde então o justo consistirá em observá-las, e o injusto, em marginá-las. . .” (Crime e Castigo: Reflexões Politicamente Incorretas, 2002, Campinas, Editora Millennium, pág. 228 nota 9).

Essa a visão expressa por Maria Helena Diniz, ao sustentar que: “Como, em regra, o dever de dar a cada um o que é seu vem imposto por norma jurídica, pode-se afirmar que o justo é o que exige o direito. Daí ser a justiça o próprio ordenamento jurídico e o ideal a que deve tender o direito.” (Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 3ª edição, 1991, São Paulo, Editora Saraiva, pág. 365).

Oswaldo Henrique Duek Marques nos ensina que o crime, na visão de Emmanuel Kant, “configura uma transgressão ao direito de cidadania”, sendo que a “pena, por sua vez, constitui uma exigência de justiça absoluta, com o objetivo de restaurar a ordem social violada pela transgressão.” (obra citada, págs. 60 e 61).

Paulo Dourado de Gusmão assevera que “o direito pode ser considerado o veículo para a realização da justiça, que é, ou deve ser, a meta da ordem jurídica” (Introdução ao Estudo do Direito, 10ª edição, 1984, Rio de Janeiro, Editora Forense, pág. 91).

De tudo quanto visto acerca do conceito de justiça e sua íntima relação com o direito, constata-se ser o direito a materialização do ideal de justiça, produzido por um povo em um determinado momento histórico.

Outro parâmetro da legislação ordinária imposto aos jurados, para o julgamento da causa que lhes for submetida, encontra-se no já invocado artigo 593, inciso III, letra “d”, do Código de Processo Penal: será anulada, pelo Tribunal de Justiça, a decisão dos jurados caso ela seja manifestamente contrária à prova dos autos, vale dizer, sem apoio a qualquer elemento probatório produzido no processo, fruto de verdadeiro arbítrio do juiz popular.

Considerando que o nosso sistema processual consagra o duplo grau de jurisdição, caso se admita que a decisão absolutória proferida pelo tribunal popular seja irrecorrível, haverá o desrespeito a esse princípio, constitucionalmente previsto.

Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes sustentam que, “... apesar da inexistência de regra constitucional expressa que garanta o duplo grau de jurisdição, trata-se, segundo a melhor doutrina, de regra imanente na Lei Maior, que, como as anteriores, prevê não apenas a dualidade de graus de jurisdição, mas até um sistema de pluralidade deles.” (Recursos no Processo Penal, 7ª edição, 2011, Editora Revista dos Tribunais, págs. 22/23).

Esses renomados autores, após afirmarem que a garantia do duplo grau de jurisdição decorre da estrutura dos órgãos da chamada jurisdição superior, consagrada na Constituição Federal, bem como ser extraída do princípio constitucional da igualdade e da necessária revisão dos atos estatais, como forma de controle da legalidade e justiça das decisões de todos os órgãos do Poder Público, consignam:

Seja como for, um sistema de juízo único fere o devido processo legal, que é garantia inerente às instituições político-constitucionais de qualquer regime democrático.

(...)

O processo penal brasileiro não conhece casos de supressão do segundo grau de jurisdição (obra citada, pág. 23).


Especificamente quanto à aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição no Processo Penal do Júri, os mesmos autores aqui invocados ensinam que cabe impugnação das decisões do Conselho de Sentença:

(...) sendo possível que o tribunal declare nulidade posterior à pronúncia (art. 593, III, a) ou altere a sentença do juiz-presidente (art. 593, III, b e c), mas não lhe é permitido substituir o julgamento popular por outro. Cabe-lhe apenas, quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos, determinar novo julgamento (art. 593, III, d e § 3º). Há, nessa última hipótese, verdadeiro juízo de cassação, e, por isso, fala-se em apelação sui generis. Com isso, buscou o legislador solução conciliatória entre dois princípios relevantes: admitiu a impugnação, assegurando assim observância do duplo grau de jurisdição, mas só permitiu ao tribunal mandar o acusado a novo julgamento, preservando dessa forma a soberania do Júri.” (obra citada, pág. 100).

Para Guilherme de Souza Nucci:

O duplo grau de jurisdição e a soberania dos veredictos são princípios constitucionais, que merecem coexistir harmoniosamente. O primeiro constitui garantia individual, prevista implicitamente na Constituição Federal, voltada a assegurar que as decisões proferidas pelos órgãos de primeiro grau do Poder Judiciário não sejam únicas, mas, submetidas a um juízo de reavaliação por instância superior.” (Tribunal do Júri, 1ª edição, 2008, Editora Revista dos Tribunais, pág. 364).

Eugênio Pacelli e Douglas Fischer, em comentário ao quesito genérico de absolvição:

(. . .) Mesmo diante da valorização da convicção íntima dos jurados (correlacionada com a soberania dos veredictos – art. 5º, XXXVIII, c, CF), entendemos que poderá haver excepcional controle para evitar arbitrariedades (mesmo que absolutórias). É que a soberania dos veredictos não pode ser interpretada no sentido que possa a conclusão do Conselho de Sentença ser dissociada integralmente do que apurado nos autos, por mais que o espírito dos jurados (unânime ou majoritário) esteja correlacionado com a intenção de absolver em ideia genérica de justiça para com o autor ou partícipe do fato. Assim, em situações excepcionais, nas quais a absolvição for totalmente dissonante das provas carreadas aos autos, poderá haver a anulação do julgado acaso promovido recurso de apelação forte no art. 593, III, d, CPP.” (Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência, 4ª edição, 2012, Editora Atlas, págs. 926/927).

Valioso, outrossim, o entendimento do prestigiado Renato Brasileiro de Lima:

Há posição minoritária na doutrina que entende que o disposto no art. 593, III, alínea “d”, do CPP é inconstitucional, sob o argumento de que, por força da soberania dos veredictos, não é possível que um tribunal superior composto por juízes togados determine a realização de novo julgamento, sob a justificativa de manifesto desrespeito à prova dos autos. Prevalece, todavia, a orientação de que é inconcebível que uma decisão manifestamente contrária à prova dos autos não possa ser revista por meio de recurso, o que poderia inclusive caracterizar afronta ao princípio do duplo grau de jurisdição, previsto implicitamente na Constituição Federal, e explicitamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8º, nº 2º, alínea “h”), o qual confere à parte prejudicada a possibilidade de buscar o reexame da matéria por órgão jurisdicional superior.

De mais a mais, é bom lembrar que, ao dar provimento à apelação com base na alínea “d” do inciso III do art. 593, o Tribunal de Justiça (ou Tribunal Regional Federal) não estará substi­tuindo a decisão dos jurados, mas apenas reconhecendo o equívoco manifesto na apreciação da prova e determinando a realização de outro julgamento pelo Júri. Em síntese, o juízo ad quem estará proferindo mero juízo de cassação (juízo rescindente), não de reforma (juízo rescisório), reservando ao Tribunal do Júri, juízo natural da causa, novo julgamento. (Manual de Processo Penal, 8ª edição, 2020, Editora Juspodivm, pág. 1446).


Se, porventura, não admitida a recorribilidade das decisões absolutórias genéricas emanadas do tribunal popular, o princípio da paridade de armas, que é consectário do princípio do contraditório, da dialética processual, também restará prejudicado e, ademais, o Ministério Público será cerceado de sua prerrogativa constitucional de promover, na sua integralidade, a ação penal, de buscar a satisfação da pretensão soberana de punir, evidenciando-se inconstitucional desequilíbrio entre as posições jurídicas da acusação e da defesa no processo penal, tendo por consequência a proteção deficiente do maior dos direitos fundamentais – a vida.

Luigi Ferrajoli, ícone do garantismo penal, destaca que “o contraditório, de fato, consiste no confronto público e antagonista entre as partes em condições de paridade (Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª Edição, 2010, p. 690).

O Supremo Tribunal Federal, a esse respeito, assim se pronunciou:

Retomando a temática das prerrogativas institucionais do Parquet, é importante destacar, ademais, que a prerrogativa de exercício exclusivo da ação penal pública, atribuída ao Ministério Público, configura forma de manifestação da própria soberania do Estado. De fato, a Constituição Federal de 1988 alçou essa instituição a um patamar que nunca havia atingido no Brasil, erigindo-a à condição de primaz protetora dos preceitos democráticos e dos direitos fundamentais mais caros à sociedade, como se pode extrair com clareza solar do seu art. 127, caput, verbis:

(...)

Sobressai, por conseguinte, do sistema jurídico-constitucional que a tarefa do legislador deve plena atenção aos direitos fundamentais, em especial quando legisla na esfera do direito penal, seja no plano material ou no processual. Isso significa que o legislador está vinculado a deveres de proteção perante a sociedade, concernentes à tutela de direitos, bens e valores encartados no próprio texto constitucional, sendo-lhe defesa a elaboração de normas que proporcionem proteção insuficiente.

(...)

In casu, insta reconhecer a ofensa ao princípio constitucional da proporcionalidade, na sua vertente da vedação de proteção deficiente, na medida em que a fragilização da tutela penal do Estado, mediante o impedimento do exercício regular da ação penal, deixa a descoberto direitos fundamentais como a vida, o patrimônio, a dignidade sexual, entre outros que o Estado deveria salvaguardar por meio da norma penal. (STF, Plenário, Questão de Ordem na Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 966.177-RS, Relator Ministro Luiz Fux, julgamento em 07 de junho de 2017).


No Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 170.559-MT, sendo redator do acórdão o Ministro Alexandre de Moraes, em julgamento datado de 10 de março de 2020, a Primeira Turma da Suprema Corte reconheceu a recorribilidade das decisões absolutórias genéricas do Tribunal do Júri, em paradigmático acórdão, que restou assim ementado:

CONSTITUCIONAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. ABSOLVIÇÃO. QUESITO GENÉRICO. TRIBUNAL DO JÚRI E DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONSTITUCIONALIDADE DE APELAÇÃO DA ACUSAÇÃO QUANDO A DECISÃO DOS JURADOS FOR MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. COMPATIBILIDADE COM A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS. EXCLUSIVA COMPETÊNCIA DO JÚRI PARA A REALIZAÇÃO DE NOVO E DEFINITIVO JULGAMENTO DE MÉRITO. RECURSO IMPROVIDO.

1.A soberania dos veredictos é garantia constitucional do Tribunal do Júri, órgão competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; sendo a única instância exauriente na apreciação dos fatos e provas do processo. Impossibilidade de suas decisões serem materialmente substituídas por decisões proferidas por juízes ou Tribunais togados. Exclusividade na análise do mérito.

2.A introdução do quesito genérico na legislação processual penal (Lei n. 11.689, de 09 de junho de 2008) veio claramente com o intuito de simplificar a votação dos jurados – reunindo as teses defensivas em um quesito –, e não para transformar o corpo de jurados em "um poder incontrastável e ilimitado".

3.Em nosso ordenamento jurídico, embora soberana enquanto decisão emanada do Juízo Natural constitucionalmente previsto para os crimes dolosos contra a vida, o específico pronunciamento do Tribunal do Júri não é inatacável, incontrastável ou ilimitado, devendo respeito ao duplo grau de jurisdição. Precedentes.

4.A apelação não substitui a previsão constitucional de exclusividade do Tribunal do Júri na análise de mérito dos crimes dolosos contra a vida, pois, ao afastar a primeira decisão do Conselho de Sentença, simplesmente, determina novo e definitivo julgamento de mérito pelo próprio Júri

5.Sendo constitucionalmente possível a realização de um novo julgamento pelo próprio Tribunal do Júri, dentro do sistema acusatório consagrado pelo nosso ordenamento jurídico como garantia do devido processo legal, não é possível o estabelecimento de distinção interpretativa para fins de recursos apelatórios entre acusação e defesa, sob pena de ferimento ao próprio princípio do contraditório, que impõe a condução dialética do processo (par conditio).

6.Recurso ordinário a que se nega provimento.


V. Conclusões

Do analisado, chega-se à conclusão que a resposta à questão-problema suscitada pela Suprema Corte é negativa: a realização de novo júri, determinada por Tribunal de 2º grau em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos, não viola a soberania dos veredictos.

Como visto, os jurados devem julgar a causa que lhes for submetida com respeito à inviolabilidade do direito à vida, à igualdade dos cidadãos perante a lei – consagrados constitucionalmente -, com imparcialidade, de acordo com suas consciências e os ditames da justiça, além de devotar respeito ao conjunto probatório produzido mediante o contraditório e o devido processo legal, pois suas decisões não podem ser manifestamente contrárias às provas dos autos.

Não podem os jurados, ainda, julgar movidos por sentimentos de piedade, indulgência ou clemência, que, como visto, não encontram albergue no nosso ordenamento jurídico. Se assim o fizerem, estarão, incontestavelmente, desrespeitando o direito à vida e à igualdade dos cidadãos perante a lei, bem como serão parciais, injustos e desrespeitarão, de forma manifesta, as provas constantes do processo, além de ferirem os princípios da legalidade e da separação de poderes.

Em resumo: por soberania dos veredictos não se compreende poder absoluto, desmedido, sem regras ou parâmetros.

Dessa forma, não sendo absoluta a soberania do juízo popular, suas decisões – absolutórias e condenatórias, em respeito à paridade de armas – não são insindicáveis, desafiando o recurso de apelação quando revelarem desvio de sua função judicante e contrariarem manifestamente a prova produzida nos autos, respeitados os princípios do duplo grau de jurisdição e da proporcionalidade, esse na sua vertente da vedação de proteção deficiente.

Destaco, aqui, a observação do jusfilósofo Santo Tomás de Aquino: “... a lei da natureza estatui que quem peque seja punido.”

Firmino Whitaker, Ministro do Supremo Tribunal Federal entre 1927 e 1934, observou, quanto à função do jurado: “Ninguém é livre para negar o que é evidente, para satisfazer suas paixões, ou favorecer alguém em detrimento dos interesses que a sociedade defende” (Jury, Typ. Espíndola, Siqueira & Comp., 1904, pág. 138).

É de Platão o seguinte ensinamento: “O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas julgar segundo as leis.”

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