Robson Pereira - www.conjur.com.br
Depois de acompanhar centenas de julgamentos,
de ter se debruçado sobre o perfil de réus e
vítimas, testemunhas e jurados, e analisar
como fatos do cotidiano são transformados em
imagens e narrativas pela acusação e pela
defesa, a pesquisadora Ana Lúcia Pastore
Schritzmeyer reuniu elementos suficientes
para desvendar como funciona, na prática, o
Tribunal do Júri no Brasil. Foram anos em
pesquisas, agora condensadas em Jogo, Ritual
e Teatro — Um Estudo Antropológico do
Tribunal do Júri, publicado pela Editora
Terceiro Nome, livro que estreita os limites
e atua na interface entre áreas poucas vezes
analisadas em conjunto.
Graduada em Ciências Sociais e em Direito,
com mestrado e doutorado em Antropologia
Social pela Universidade de São Paulo, onde
dá aulas e coordena o Núcleo de Antropologia
do Direito, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer vê
o tribunal do júri no Brasil como um espaço
privilegiado para uma profunda reflexão
social, por atuar sobre crimes que mexem com
valores arraigados na sociedade. "Quando
esses valores são violados, é normal que
todos pensem sobre o que fariam numa situação
com aquela", justifica, ao reforçar a tese de
que condenações ou absolvições decorrentes do
julgamento transcendem acusados e dizem
respeito a cada um de nós.
Para ela, mais do que o fato particular, o
que está em julgamento pelos sete jurados são
questões cotidianas presentes na vida social
e que tratam de acontecimentos que poderiam
envolver qualquer pessoa, dentro ou fora do
grupo. "Cada crime é um motivo para discutir
os valores para os quais ele aponta e cada
fato em si é um estopim para o julgamento de
algo mais amplo", afirma. Ao descrever o
Tribunal do Júri como um “círculo mágico”,
ela observa que "no espaço lúdico e
teatralizado das sessões de Júri, mais do que
encenações de acontecimentos passados, são
criadas histórias e personagens que dão
sentido à vida social presente".
O livro teve origem na tese de doutorado em
antropologia defendida por ela na
Universidade de São Paulo. A principal
conclusão do trabalho é que os julgamentos
pelo Tribunal do Júri baseiam-se na
manipulação de imagens relativas a dois
poderes fundamentais em todo e qualquer grupo
social: o de um indivíduo matar outro e o de
instituições sociais controlarem tal
faculdade individual. "O que está em jogo e
em cena, no Júri, mais do que a vida e a
morte de indivíduos, é a própria
sobrevivência do grupo", afirma. "Dependendo
de como as mortes são textualizadas e
contextualizadas, transformadas em imagens e
encenadas, o poder individual de matar é
considerado socialmente legítimo ou
ilegítimo".
Tratar o júri como um teatro não significa
menosprezo ou uma posição contrária ao seu
funcionamento, enfatiza a pesquisadora. "É
teatro no sentido de que é um espaço
privilegiado para percebermos os valores que
ali são encenados, enfatizados e colocados em
discussão", afirma. "Tem um placo e uma
plateia, os protagonistas estão claramente
identificados e neste espaço cênico estão em
jogo argumentos que competem pela adesão dos
jurados", reforça. No livro, ela chama a
atenção para a existência de um sistema de
persuasão performática que reafirma valores,
mas também propicia questionamentos e
mudanças em regras morais, sociais e
econômicas. "Cada sessão de Júri é um teste
desse mundo das regras, ao qual a cultura é
submetida e através do qual ela submete os
envolvidos".
No início do ano, arrolada pela defesa, Ana
Lúcia Pastore Schritzmeyer participou do
julgamento de Gil Rugai, um ex-seminarista,
acusado e condenado a 33 anos de prisão pela
morte do pai e da madrasta, em 2004. Com o
seu depoimento, a defesa pretendia convencer
os jurados de que o réu não era "a pessoa
estranha e sem emoções", de acordo com o
perfil construído pela mídia, a partir das
"provas" reunidas pela polícia e pela
promotoria. "A coleta de provas é uma questão
de seletividade", disse a pesquisadora,
chamando a atenção para o risco de "se
construir narrativas pautadas em estereótipos
e em valores sociais subjetivos". Indagada
pela acusação se havia lido as mais de 5.000
páginas do processo, respondeu que não, mas
que tinha a certeza de que os jurados também
não leram e que iriam decidir com base nas
"interpretações" oferecidas pela acusação e
pela defesa.
Serviço:
Título: Jogo, Ritual e Teatro — Um Estudo
Antropológico do Tribunal do Júri
Autora: Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer
Editora: Terceiro Nome
Idioma: Português
Edição: 1ª Edição — 2013
Número de páginas: 296
Preço: R$ 33,15
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