::Confraria do Júri::

 
 

 

      

Enquete

Você é a favor da ampliação da competência do Tribunal do Júri para outros crimes seguidos de morte?
 
Sim, para qualquer crime doloso seguido de morte.
Sim, com exceção do estupro seguido de morte.
Não. A competência do Tribunal do Júri deve permanecer a mesma.
Não tenho opinião formada.

 
Ver resultados
 
  
  
     Dicas de leitura
 
26/07/2013  - Livro mostra perigos de imprensa condenar acusados
 
Rafael Baliardo - Conjur - www.conjur.com.br

Caso Kliemann - A história de uma tragédia
Celito De Grandi
Editora EDUNISC-Literalis
254 páginas



Uma importante lição da história sobre as relações entre Justiça, jornalismo e opinião pública é recuperada pela obra “Caso Kliemann – a história de uma tragédia”, livro-reportagem do jornalista gaúcho Celito De Grandi, que rememora os descaminhos, sobretudo da imprensa, em meio à investigação de um crime sem solução, no Brasil dos anos 1960.

O assassinato nunca resolvido, no inverno de 1962, em Porto Alegre, de Margit Kliemann, bela e jovem esposa do deputado estadual Euclydes Kliemann, levou a sociedade gaúcha do pesar e assombro ao desatino coletivo. A reação foi alimentada pela irresponsabilidade e sensacionalismo de dois jornais locais, hoje extintos.

Um deles era a versão sulista de a Última Hora, publicação concebida por Samuel Wainer, também com edições em outros quatro estados (São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Pernambuco), além do original carioca. O segundo, o Diário de Notícias, criado em 1925, foi integrado ao império de comunicação de Assis Chateaubriand cinco anos após sua fundação.

Euclydes e Margit Kliemann formavam uma espécie de casal dourado de Santa Cruz do Sul, próspero município na zona de colonização germânica do estado. De famílias tradicionais, eram pais jovens de três meninas e ambos polarizavam, assim, todo o tipo de expectativa e projeção de família saída do mundo dos sonhos. Euclydes Kliemann era ainda, à época, um dos mais destacados líderes da oposição ao governo de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul.

Com o violento assassinato de Margit, a ausência de pistas para a solução do crime e todos os demais elementos que se prestavam ao mau gosto popular — conflitos políticos, um casal jovem e rico, três órfãs de mãe e um crime misterioso — não tardou para que o abuso policial e a debilidade da cobertura jornalística resultassem na execração de Euclydes. Eleito principal suspeito do crime, acabou massacrado pela opinião pública.

A obra De Grandi recompõe o desequilíbrio da apuração policial e o despudor da imprensa em alimentar o irrefreável apetite do público por especulação e justiçamento.

De manchetes sensacionalistas, o Última Hora passou também a publicar fotonovelas sobre hipóteses do crime. Logo, Última Hora e Diário de Notícias cuidaram de explorar personagens fantasiosas e situações inventadas, como uma mística dama de vermelho que supostamente possuía a chave para a solução do crime.

Em âmbito nacional, distante do alarde provinciano, a revista O Cruzeiro comparou a morte de Margit Kliemann ao crime do Sacopã, no Rio de Janeiro, como ficou conhecido o homicídio de um bancário ocorrido dez anos antes do caso Kliemann e também nunca formalmente solucionado.

Explorada por opositores políticos, a repercussão do caso acabou conduzindo Euclydes Kliemann e sua família ao desespero e ao prolongamento da tragédia. Um delegado que nutria um desprezo irreprimido por políticos, obcecado em provar a culpa de Euclydes a despeito da ausência de evidências, completava o circo de horrores.

Cerca de um ano após o crime, em entrevista a uma rádio local de Santa Cruz do Sul, Euclydes Kliemann, ainda na posição de principal suspeito de matar sua mulher, foi assassinado com tiros a queima roupa, com o programa no ar, por seu desafeto político, o vereador marechal Floriano Peixoto Karan Menezes, que invadiu o estúdio disparando uma pistola, sob acusações de que Kliemann era o responsável pela morte de Margit.

Serenidade e distanciamento

Na noite de 20 de junho de 1962, Euclydes, que estranhava o atraso da mulher em um encontro com amigos, resolveu buscá-la na mansão da família em um bairro nobre de Porto Alegre. Ao entrar em casa, o deputado deparou-se como o corpo de Margit inerte ao pé da escada, com a cabeça e o rosto desfigurados e mergulhados em uma poça de sangue. Em choque, o deputado cai em prantos e tem um acesso de vômito. Quase todos os fatos posteriores a esse episódio, registra o livro de Celito De Grandi, dão conta do desvirtuamento do papel das instituições e da imprensa durante o processo de apuração do crime.

A lição severa trazida à memória pelo caso Kliemann é o do valor intocável do direito de defesa e do devido processo legal e, portanto, da imprescindibilidade de uma atuação exemplar e serena por parte das instituições e dos meios de comunicação.

Ao se converter em veículo para paixões partidárias e desavenças ideológicas, dando costas assim à pesquisa jornalística e a valores como imparcialidade e objetividade, a imprensa, ao invés de registrar a história, tornou-se personagem desta. O caso Kliemann reforça, deste modo, a certeza de que o ambiente para a investigação e o julgamento de um crime deve ser o da serenidade e do distanciamento proporcionados pelo exercício do ceticismo, afastando, assim, o desvario de opiniões em favor da inquirição e indagação sistemáticas, que não devem também descartar o respeito pela dor deixada no rastro da tragédia.

O livro reforça o argumento de que a história mostra que à imprensa quase sempre cabe dar vazão a expedientes expiatórios que assaltam, em frenesi, a opinião pública. De Grandi mostra em “Caso Kliemann” que a confiança de jornalistas e donos de jornais e o seu deslumbre com as próprias ideias e opiniões é uma falha humana que justifica a importância da abdicação da certeza e do cultivo da dúvida como cerne da profissão de jornalista.

Caso presidencial

Os episódios narrados pelo autor podem ser referidos com outros descritos pelo jornalista e escritor cearense Lira Neto em sua meticulosa biografia “Getúlio”, quando retoma a história de um homônimo do então presidente Getúlio Vargas acusado de violentar uma jovem de ascendência indígena.

No início dos anos 1920, dois agressores, um deles identificado como Getúlio Dornelles Vargas, estupraram uma jovem índia no interior do Rio Grande do Sul. Cercados por membros do aldeamento, mataram ainda o irmão dela e o cacique do grupo no esforço de fugirem do local.

Em 1954, décadas mais tarde, o jornalista Carlos Lacerda não hesitou em revelar, nas páginas do jornal Tribuna da Imprensa, que o presidente Getúlio Vargas era um estuprador e assassino cruel. Sem checar a informação, apenas embasado em um relatório oficial do governo gaúcho que citava o crime e o homônimo do presidente, Lacerda reclamou ao documento o status de prova incontestável. Historiadores e biógrafos de Getúlio Vargas perpetuaram o erro ao se referir ao episódio do estupro, com base apenas na afirmação de Lacerda e no tal relatório oficial.

Documentação perseverante

Voltando ao caso Kliemann, o tratamento que Celito De Grandi deu à história pode ser um exemplo para biografias servidas ainda enquanto cozinham os fatos dos quais elas tratam. A reportagem documentada que resultou no livro é uma pauta de quase cinquenta anos. A partir de junho de 1962, o autor observou de perto o “trabalho frenético e delirante” dos repórteres policiais, seus colegas de redação no Diário de Notícias. Três anos mais tarde, o autor foi cobrir o julgamento do assassino de Euclydes Kliemann, o marechal Karam Menezes.

Apenas em 2006, o jornalista começou a aproximação e as conversas iniciais com as três filhas do casal. Somente quatro anos antes da publicação do livro em 2010, é que o escritor, com a ajuda de pesquisadores, começou a converter suas incursões tanto no Museu de Comunicação Social na Divisão de Biblioteca e Memória Parlamentar da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul quanto Memorial do Judiciário, também no estado, com o processo “angustiante” de redação do livro.

Ocorrido em 1965, o júri do assassino de Euclydes Kliemann teve que ser feito em um ginásio, frente à repercussão do episódio. A gravação do tiro captado pelo programa de rádio foi reproduzida à exaustão no esforço de sensibilizar público e os jurados. A defesa de Karam Menezes ficou a cargo do então jovem criminalista, o hoje senador Pedro Simon, que amparou sua defesa no argumento de que Karam não premeditou o crime. A “peça oratória” apresentada pelo jovem advogado e político, foi classificada de “vibrante” pela imprensa de Santa Cruz do Sul na época.

Pedro Simon assumiu o caso depois de estudar a fundo a morte de Margit Kliemann e restar convencido que Euclydes era inocente. É a mesma convicção do autor, Celito De Grandi, apesar de formalmente o crime ainda ser considerado insolúvel. As maiores suspeitas recaem hoje todas sobre um sobrinho já falecido de Euclydes Kliemann, que, em razão do vício em drogas, teria invadido a mansão do tio, em companhia de uma gangue, na certeza de que ele e a mulher estariam fora, comemorando o aniversário de 18 anos de casamento. Foi quando teriam se deparado com Margit. E o resto não foi silêncio.

Voltar


comente/critique essa matéria

 

 Confraria do Júri - Rua 6, s/nº, CPA - Cuiabá/MT