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19/04/2022  - O bicentenário do júri brasileiro
 
César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Tribunal do Júri em Mato Grosso e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”.

“Já que a questão chegou a meu conhecimento indicarei juízes de crimes sangrentos, todos comprometidos por um juramento, e o alto tribunal assim constituído terá perpetuamente essa atribuição. Apresentai, então, vós que estais em litígio, testemunhas e provas – indícios jurados bastante para reforçar vossas razões. Retornarei depois de escolher os melhores entre todos os cidadãos de minha Atenas, para que julguem esta causa retamente, fiéis ao não decidirem contrariamente aos mandamentos da justiça.” Essa foi a deliberação de Palas Atena, ante o matricídio cometido por Orestes (1).

Aí está a origem do Tribunal do Júri na literatura, descrita por Ésquilo em 458 a.C. Fora da arte, a fundação do Tribunal Popular é alvo de grande controvérsia. Nas palavras de Carlos Maximiliano, “as origens do instituto, vagas e indefinidas, perdem-se na noite dos tempos, entretanto, a propagação do Tribunal Popular pelo mundo ocidental teve início, perdurando até hoje, em 1215” (2).

Da Magna Carta de 1215 extrai-se a semente do Tribunal do Júri contemporâneo: “Nenhum homem livre será preso ou despojado ou colocado fora da lei ou exilado, e não se lhe fará nenhum mal, a não ser em virtude de um julgamento legal dos seus pares.”

Antes mesmo da independência do Brasil, em 04 de fevereiro de 1822, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro sugeriu a Dom Pedro a criação de um Juízo de Jurados. O príncipe regente acolheu tal sugestão em 18 de junho de 1822 e instituiu o Tribunal do Júri na colônia (3).

A instituição do Júri foi prevista pela Constituição do Império de 25 de março de 1824. Em seguida, lei de 1830 a organizou em duas espécies, quais sejam, o Júri de Acusação e o Júri de Julgação. O Código de Processo Criminal de 1832 previu o Júri de Acusação, com 23 jurados, e o Júri de Sentença, com 12 jurados. O Júri de Acusação foi extinto pela Lei 261 de 03 de dezembro de 1841 e pelo Regulamento 120 de 31 de janeiro de 1842.

O juízo por jurados evoluiu mediante muitas transformações legislativas, sofrendo duro golpe em 1937, pelo desprezo da Carta Constitucional de 10 de novembro. Foi a única Constituição brasileira que sonegou o Tribunal Popular em seu texto. Para piorar, em 05 de janeiro de 1938, o Decreto-Lei 167 aboliu a soberania dos veredictos.

Em 18 de setembro de 1946, a Constituição, em seu art. 141, §28, arrolou a instituição dentre as garantias individuais, restabelecendo a soberania dos veredictos. A Lei 263 de 23 de fevereiro de 1948 regulamentou a composição e o rito do Júri.

As Constituições de 1967 e de 1969 reafirmaram a instituição.

Em 05 de outubro de 1988, com o advento da atual Constituição Federal, o Júri transformou-se em cláusula pétrea. Conforme sua atual formatação constitucional, o Tribunal do Júri é tripla garantia: garantia de participação do povo na administração da justiça; garantia de o acusado ser julgado por seus pares; e garantia de defesa e proteção da fonte de todos os interesses, direitos e deveres humanos: a vida (4).

Há mais de um século, o polímata brasileiro Ruy Barbosa afirmou que “há, em verdade, na questão do júri, duas classes de reformadores distintas: a dos seus adeptos, que, crentes na eficácia da instituição, se empenham em aperfeiçoá-la e a dos seus antagonistas, que, mediante providências inspiradas no pensamento oposto, buscam cercear e desnaturar progressivamente essa tradição, até que a eliminem” (5).

No dia 03 de fevereiro de 2021, a instituição do Tribunal do Júri foi duramente criticada pelo ministro Dias Toffoli: “Há que se acabar com o Tribunal do Júri, porque ele é um instituto falido, que não se presta a penalizar, a sancionar, o que gera sentimento de impunidade na sociedade" (6).

Pouco esforço é preciso para notar que tais palavras combinam com a segunda classe de reformadores apontada por Ruy Barbosa.

É verdade que, frequentemente, o Tribunal do Júri não se mostra eficiente para a imediata punição de assassinos. A explicação é simples: quando ignoram a essência da soberania dos veredictos, a justiça acaba se tornando tardia. Não é culpa da instituição, nem dos jurados, mas sim da hermenêutica judiciária (7).

É necessário aperfeiçoar a instituição do Júri. E isso demanda pouco esforço, que pode - e deve - ser realizado de forma rápida e eficiente. Basta consciência constitucional temperada com boa vontade.

O jurado, ainda que não letrado no Direito, sabe muito bem discernir a civilização da barbárie, o certo do errado, o lógico do ilógico, o racional do irracional, o bem do mal, o justo do injusto, o legal do ilegal, a verdade da falsidade, a informação da desinformação e o que deve do que não deve ser feito.

Conforme o artigo inaugural da Constituição Federal, todo poder emana do povo, que, em regra, é exercido por seus representantes. É a mais clara previsão da soberania popular e do regime democrático. Compensando o déficit de democracia no Judiciário, já que seus membros não são escolhidos pelo povo, o constituinte estabeleceu dentre os direitos e garantias fundamentais a instituição do Tribunal do Júri, com a competência de julgar os crimes dolosos contra a vida.

Isso importa dizer que, diante de um ataque à fonte de todos os direitos humanos, a vida, quem julga é o cidadão-jurado. Por isso, seus veredictos são soberanos, o que significa dizer que a última e definitiva palavra nos crimes dolosos contra a vida não pertence ao juiz, desembargador ou ministro, senão ao povo. Mais que isso: as decisões dos jurados têm eficácia imediata e efeito vinculante. O veredicto absolutório implica liberdade imediata, ao passo que o veredicto condenatório impõe o início da execução da pena.

É preciso que operadores jurídicos, sobretudo juízes, desembargadores e ministros, habitem a primeira classe de reformadores estipulada por Ruy Barbosa.

No ano em que o Tribunal do Júri completa seu bicentenário em um país que ocupa o pódio infame das nações que mais matam no mundo, o Supremo Tribunal Federal ostenta o poder-dever de aperfeiçoá-lo por meio da correta exegese do texto constitucional.

Vale dizer, a Suprema Corte tem a chance – que não pode ser desperdiçada! - de cooperar para a contenção e redução de assassinatos no país, em defesa, proteção e reafirmação do direito à vida, nos julgamentos do Recurso Extraordinário 1235340, que trata do cumprimento imediato da condenação pelo Júri, e do Agravo Regimental 1225185, que cuida da garantia de recurso ao Ministério Público contra absolvição injusta no Júri.

É uma afronta ao direito à vida, à coesão social, ao sentimento mais básico de justiça, à soberania popular, à democracia e à cidadania alguém, com a franquia da plenitude de defesa, ser publicamente julgado e condenado pelo titular de todo o poder, o povo, e, livre, deixar o Tribunal do Júri para recorrer em liberdade, cujo recurso servirá apenas para procrastinar a concretização da jurisdição, haja vista a impossibilidade de reforma do veredicto condenatório por outro órgão judicial (efeito vinculante). É um escárnio à memória da vítima, à família pranteada, à sociedade desfalcada e à comunidade indignada. O sentimento de impunidade é pernicioso à ordem social, ao progresso civilizacional e, principalmente, à proteção dos direitos humanos (8).

Igual afronta ocorre diante de absolvições teratológicas, quais sejam, aquelas totalmente contrárias às provas do processo ou ao arrepio das leis, com a negativa de recurso ao Ministério Público. Em qualquer Estado Democrático de Direito, não existe poder incontrolável e a impunidade de assassinos aniquila todos os ditames civilizacionais.

Como afirmou Roberto Lyra, lembrado por Carlos de Araújo Lima: “O Júri, para absolver ou condenar, pode ascender a sua visão da estreiteza dos textos para a realidade individual e social. O Júri faz, sem dúvida, obra perfeita de justiça social. Que se faça justiça ao Júri cuja eficiência ninguém lhe pode recusar” (9).

Por tudo isso, uma conclusão absolutamente segura se impõe: em seu bicentenário, o Tribunal do Júri clama, reclama e conclama por seu aperfeiçoamento em busca de sua máxima eficácia para, assim, gozar de maior efetividade em seus veredictos. Para tanto, basta que os membros do Judiciário deem à soberania dos veredictos o que lhe é de direito, qual seja, a eficácia imediata de suas decisões, e à sociedade o direito de recorrer contra absolvições injustas em busca de novo julgamento popular, para que, assim, não figure como campo de injustiça e impunidade. Logo, é indispensável que os magistrados - dos juízes presidentes do Tribunal do Júri aos ministros da Suprema Corte – engrossem as fileiras da primeira classe de reformadores discriminada por Ruy Barbosa.

Por fim, ao completar 200 anos, um voto: que o Tribunal do Júri, o coração que bombeia o sangue da democracia no corpo do Judiciário, seja permanente, eficiente e eficaz na garantia da coexistência pacífica e segura entre as pessoas, com a reafirmação do direito à vida, fonte de todos os interesses, direitos e deveres humanos.
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1 ÉSQUILO. Oréstia: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 169.

2 MAXIMILIANO, Carlos. Comentários a Constituição brasileira. 5. Ed. Rio de Janeiro – São Paulo: Freitas Bastos, 1954. v. 1 a 3, p. 156.

3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/historicos/dim/DIM-18-6-1822-2.htm

4
O inciso XXXVIII do artigo 5º da CF, em especial a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, deve ser lido a partir de sua cabeça (inviolabilidade da vida). O direito à vida, fonte de todos os interesses, direitos e deveres humanos e fundamentais, epicentro de todo o sistema político, jurídico, econômico e social, reclama proteção integral. Ao lado de outros, o Tribunal do Júri é um dos mecanismos do Sistema de Proteção Integral do direito à vida.

5 BARBOSA, Ruy. O júri sob todos os aspectos. Rio de Janeiro: Ed. Nacional de Direito, 1950, p. 64.

6 Afirmação proferida durante julgamento do Recurso Extraordinário 1010606, envolvendo o direito ao esquecimento.

7 Cumpre registrar que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento pela execução provisória da condenação pelo Tribunal do Júri (v.g. Habeas Corpus 118.770/SP). O Superior Tribunal de Justiça, por ambas as turmas, entende no sentido oposto.

8 Anote-se que as 10 condenações do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos têm por fundamento a impunidade (ausência de proteção judicial do direito à vida).

9 LIMA, Carlos de Araújo. Os Grandes Processos do Júri. v. 1. 6. ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, p. 35.

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