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25/03/2022  - O Tribunal do Júri e o valor epistêmico da empatia
 
Marcella Mascarenhas Nardelli, doutora em Direito Processual pela Uerj, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri", da Editora Lumen Juris. Texto veiculado originariamente no site Conjur.

O júri é um exemplo paradigmático de uma instituição democrática, cujo valor simbólico se traduz na perspectiva de zelar pela aplicação da justiça conforme os valores da comunidade. Os cidadãos carregam esses valores comunitários tanto em sua forma natural de apreciar os fatos quanto na relativa independência que desfrutam em relação ao Estado. É por esta razão que os jurados podem negar aplicabilidade a determinados preceitos legais (1) em face do potencial de produção do que considerarem uma injustiça concreta.

Há incontestavelmente algo de sagrado nesse órgão que carrega sozinho o peso da decisão que deve simultaneamente selar o destino dos indivíduos e expressar os valores da comunidade (2). E é assim que, no que se refere à decisão a ser alcançada, os jurados brasileiros devem agir de acordo com o seguinte juramento, ao qual assentiram no momento de formação do conselho de sentença: "Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça".

O que se requer, pois, dos jurados, na medida em que concitados a decidir com base em sua consciência? Como determinar os parâmetros para o alcance da tão invocada "íntima convicção"? Ou, por outro lado, ainda que se recorra à fórmula do standard de prova aplicável aos casos criminais da common law, o que se compreende como uma "dúvida razoável" e como o jurado deve saber quando está diante dela?

A constatação de que a subjetividade é indissociável de qualquer juízo humano pode conduzir a uma concepção distinta dos processos cognitivos inerentes a esta atividade, de modo a reconhecer o papel de certas virtudes intelectuais no raciocínio sobre o veredicto, assim como de compreender os impactos indesejados de alguns possíveis vícios. Essa perspectiva é abordada por Ho Hock Lai (3) ao defender para o processo penal a realização da Justiça como Humanidade (4), noção que se conecta ao reconhecimento do valor epistêmico da empatia na apreciação dos fatos.

A ideia de Justiça como Humanidade se apoia no resgate do caráter humano dos julgamentos e no reconhecimento do outro como alguém cuja dignidade e valor intrínseco devem ser respeitados. Manifesta-se por meio de um tratamento empático do julgador em uma atitude afetiva de assumir a posição de outro ser humano e vivenciar a situação a partir de seu ponto de vista, a partir das particularidades de seu contexto — e não sob as lentes de sua própria experiência (de quem julga).

A proposta de Ho não pretende relativizar a punição que é devida a quem, de fato, cometeu o crime e deve ser condenado por sua conduta. A ideia é chamar a atenção para a importância de se enxergar a humanidade do sujeito por trás dessa conduta — apesar dela. Mas aqui vai um importante alerta: na apreciação dos fatos, o tratamento empático do julgador não pode se dirigir somente para a pessoa acusada — isso levaria a um julgamento enviesado. Ao contrário, a vítima e seus familiares, assim como demais envolvidos no caso, são igualmente dignos dessa empatia.

A partir dessa perspectiva, a justiça não é — e nem deve ser — cega. A cegueira poderia representar, inclusive, um pretexto para abafar as injustiças por trás dos vieses implícitos à subjetividade de quem julga. Nas palavras do autor, é comum se defender o ideal de uma dispensação desapaixonada da justiça. Não parece adequado sustentar, contudo, que não se deva dispensar qualquer cuidado empático em relação a nenhum sujeito. Ao contrário, importa assegurar que esse tratamento cuidadoso não seja distribuído de forma injusta e desequilibrada no contexto de um julgamento. O cuidado empático com o acusado deve ser sabiamente equilibrado com o cuidado empático com, entre outros, a vítima e seus familiares. O julgador atencioso mantém a imparcialidade epistêmica, mantém a mente aberta e exerce um juízo cauteloso sem fazer qualquer pré-julgamento (5).

Falar de Justiça como Humanidade e da importância de equilíbrio na distribuição da empatia entre os sujeitos afetados pelo julgamento não é algo que se justifique apenas pela nobreza de seus ideais, mas sim pelos reflexos epistêmicos desse tratamento empático. Em outras palavras, a atitude mais ou menos empática do julgador (juiz ou jurado) em relação ao acusado tem repercussões relevantes na forma em que as hipóteses e elementos probatórios apresentados serão considerados, de modo a determinar, em última medida, a sua apreciação quanto ao atingimento ou não do suporte probatório exigido para a condenação.

Ao discorrer sobre o tema, Ho Hock Lai lembra que um raciocínio probatório cuidadoso exige perseverança mental e o dispêndio de uma energia considerável. Por que o juiz/jurado se incomodaria em se esforçar? Fatores como a dificuldade de tratar com profundidade todas as informações que perpassam pelo dia a dia; a ânsia de retornar para seus afazeres habituais e o próprio descaso do cidadão com o exercício do júri; e, por outro lado, o grande volume de processos e as pressões por produtividade dos juízes profissionais contribuem para o recurso aos atalhos cognitivos. Ou seja, um conjunto de fatores pode explicar a tendência à limitação dos recursos mentais mobilizados no momento de se tomar decisões. No entanto, o cuidado empático com o acusado pode ser capaz de fornecer ao julgador uma motivação moral para esse esforço (6).

Além do mais, em sendo a dúvida um estado de desconforto imbuído por um sentimento de ansiedade pelos riscos envolvidos e as potenciais consequências de uma decisão errônea, o julgador com empatia será mais paciente escutando o réu, não será desdenhoso de seu relato e, provavelmente, dará atenção para as provas que lhe prestam corroboração. Ademais, tem menores chances de se render, cegamente, a uma hipótese acusatória infundada (7).

Essas reflexões, apesar de igualmente aplicáveis ao contexto de decisão do juiz profissional, ganham especial sentido quando se conectam à dimensão do juízo por jurados.

Como destacado no início do texto, o propósito da participação popular na administração da justiça sedimenta-se no pretexto de um direito do acusado ao julgamento por seus pares, estando intrinsecamente relacionado à ideia de aplicação dos valores da comunidade por quem esteja em condições de valorar a conduta do acusado a partir de seu próprio contexto social. Por outro lado, na mesma linha da distribuição equilibrada da empatia, importa que se disponha de um julgamento por um júri imparcial, representativo da comunidade em que os fatos ocorreram.

Na discussão sobre a tensão verificada entre os conceitos de imparcialidade, representatividade social e julgamento pelos pares — a qual é bastante recorrente na literatura e jurisprudência norte-americanas, Toni Massaro (8) apresentou, com base no conceito de empatia, uma interessantíssima representação da imagem visual de um júri ideal como um tríptico — uma imagem formada por três painéis, lado a lado, na qual os dois laterais se fecham e se sobrepõem perfeitamente ao central.

Segundo ele, o painel esquerdo representa a imagem de um júri justo para o réu, que possui a esperança de ser ouvido por quem compartilhe de seu contexto social e seja capaz de julgar seus atos com base em sua experiência, manifestando empatia com sua condição. O painel da direita representa um júri justo sob a ótica da acusação, o qual seja composto por cidadãos que desempenharão seu papel na aplicação da lei penal e condenarão os réus cuja culpa esteja estabelecida. A acusação deseja um júri empático com as vítimas do crime e que não tenha receios de punir aqueles que violaram a lei. Por fim, ambos os lados representam as metades sobrepostas do painel central, o qual representa a imagem da comunidade do que deve ser um júri justo: um grupo de cidadãos que estejam abertos para compreender tanto a perspectiva do réu quanto o contexto da vítima, dispostos a apreciar as provas de ambos os lados para o alcance da verdade (9).

Não é preciso avançar muito para concluir que a imparcialidade de um julgamento pelo júri depende, em grande medida, de uma composição justa do conselho de sentença. Veja-se que, nesse caso, os esforços se dirigem ao alcance de um equilíbrio no tratamento empático por vias institucionais, ou seja, reproduzindo no júri um desejável equilíbrio entre as distintas posições e condições sociais de seus membros por meio de uma adequada representatividade.

Um exemplo bastante significativo da relevância prática da relação entre o tratamento empático — e seus reflexos na decisão — com a composição do conselho de sentença é expresso pela recorrência das absolvições, nas cortes norte-americanas, de policiais levados a júri acusados de matar negros em casos de abordagens abusivas e violentas. Na maioria dos estados é permitido o uso de força letal pelos policiais caso razoavelmente identifiquem um perigo iminente para si mesmos – um padrão que é tanto subjetivo quanto profundamente propenso ao preconceito racial. Os jurados, especialmente os brancos, tendem a dar aos oficiais o benefício da dúvida (10) — em uma clara demonstração de desequilíbrio na distribuição do tratamento empático entre acusados e vítimas.

Diante disso, causa incredulidade o fato de que esses policiais sejam recorrentemente julgados por júris compostos quase que exclusivamente por cidadãos brancos (11). Ainda que se parta do pressuposto de que esses cidadãos não julgarão com base em estereótipos e preconceitos em relação à vítima — cujos atos alegadamente geraram a suspeita razoável de risco ao policial — , dificilmente lhe dispensarão um tratamento empático na apreciação dos fatos.

Nos Estados Unidos são recorrentes as discussões sobre a complexa dinâmica de seleção de jurados e as possíveis manifestações discriminatórias por meio das recusas peremptórias (12). Recentemente, inclusive, o estado do Arizona extinguiu a figura das recusas imotivadas de pretensos jurados (13) em face do risco de que sejam utilizadas para acentuar a discriminação racial.

Para fins de contexto sobre as complexidades do racismo que é recorrente nos casos de violência policial nos EUA (o que também é frequente por aqui), não é demais relembrar as repercussões do movimento Black Lives Matter, assim como o caso que lhe serviu de estopim — no qual o policial Derek Chauvin conteve brutalmente George Floyd com seu joelho por mais de 9 minutos, de modo a lhe impedir a respiração e lhe custar a vida. Derek Chauvin foi condenado por um júri com composição atípica: 57% brancos, 29% negros e 14% multirraciais, com 64% mulheres e 36% homens. O júri tinha uma proporção maior de negros do que aquela verificada na população da cidade de Minneapolis. A composição multicultural do júri de Chauvin foi um dos fatores decisivos em sua condenação (14).

Por outro lado, paralelamente à composição do conselho de sentença, há ainda uma perspectiva interessante a ser destacada, a qual repercute na efetivação da Justiça como Humanidade. Trata-se da necessidade de se identificar e combater os vícios comuns ao raciocínio decisório decorrentes de preconceitos e vieses implícitos, os quais nem sempre são reconhecidos. Não importa o quão imparciais pensemos que somos, nossos cérebros estão programados para tomar decisões inconscientes.

Ao contrário de se ignorar essas manifestações que, certamente obscurecem o raciocínio e comprometem o julgamento, Ho Hock Lai defende que é preciso compreender a influência desses fatores no modo pelo qual as pessoas exercem um juízo sobre os fatos. Isso é importante para que os julgadores (juízes ou jurados) estejam prontos a exercer uma atitude de autocorreção por meio das virtudes que se contrapõem ao vício do preconceito: integridade e humildade intelectual e uma mente aberta (15). Só assim será possível aspirar à realização, de fato, da Justiça como Humanidade.

Nessa perspectiva concluo as reflexões com um trecho final de uma das instruções lidas pelo juiz aos jurados no caso Derek Chauvin, no qual sua condenação serviu tanto para romper com uma tradição de parcialidade nesses julgamentos, como para reafirmar que as vidas negras importam.

"Pense por que você está tomando a decisão que está tomando e examine-a para ver se há parcialidade. Reconsidere suas primeiras impressões sobre as pessoas e as provas neste caso. Se as pessoas envolvidas fossem de diferentes origens, por exemplo, mais ricas ou mais pobres, mais ou menos instruídas, mais velhas ou mais jovens, ou de um gênero, identidade de gênero, raça, religião ou orientação sexual diferentes, você ainda as veria, assim como as provas, da mesma forma?"

* Pelo dia 21 de março, Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, fica o alerta de que nuca teremos humanidade em um sistema de justiça criminal enquanto não for combatido o racismo que tanto oprime e encarcera a população negra e pobre no Brasil.

1 - JACKSON, John D. Making Juries Accountable. In: The American Journal of Comparative Law. nº 50, 2002, p. 478-479.

2 - GARAPON, Antoine. PAPAPOULOS, Ioannis. Julgar nos Estados Unidos e na França. Cultura jurídica francesa e common law em uma perspectiva comparada. Trad. Regina Vasconcelos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 147.

3 - HO, Hock Lai. Virtuous Deliberation on the Criminal Verdict. In: AMAYA, Amalia; HO, Hock Lai. Law, Virtue and Justice. Portland: Hart Publishing. 2013.

4 - Essas premissas já foram trabalhadas aqui por Janaina Matida e Livia Moscatelli no contexto do desenvolvimento de uma investigação criminal epistêmica: https://www.conjur.com.br/2020-ago-14/limite-penal-construcao-investigacao-preliminar-epistemica#sdfootnote7sym

5 - HO, Hock Lai. cit., p. 259.

6 - HO, Hock Lai. cit., p. 252.

7 - HO, Hock Lai. cit., p. 259.

8 - Massaro, Toni M. Peremptories or Peers? Rethinking Sixth Amendment Doctrine, Images and Procedures. North Carolina Law Review. n. 64, 1986, 517-518.

9 - Idem, ibidem.

10 - https://news.bloomberglaw.com/us-law-week/convictions-of-police-alone-wont-fix-whats-wrong-with-law-enforcement

11 - https://newsone.com/3619834/majority-white-juries-decide-police-fatal-shooting-cases/

12 - Ver, nesse sentido: Massaro, Toni M. Peremptories or Peers? Rethinking Sixth Amendment Doctrine, Images and Procedures. North Carolina Law Review. nº 64, 1986.

13 - https://www.conjur.com.br/2021-set-08/arizona-eua-extingue-recusas-peremptorias-selecao-juri

14 - JACKSON, Liane. The Chauvin conviction shows why diverse juries matter. Disponível em: https://www.abajournal.com/magazine/article/lessons-from-the-chauvin-conviction

15 - HO, Hock Lai. cit., p. 253.

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