::Confraria do Júri::

 
 

 

      

Enquete

Você é a favor da ampliação da competência do Tribunal do Júri para outros crimes seguidos de morte?
 
Sim, para qualquer crime doloso seguido de morte.
Sim, com exceção do estupro seguido de morte.
Não. A competência do Tribunal do Júri deve permanecer a mesma.
Não tenho opinião formada.

 
Ver resultados
 
  
  
     Artigos
 
09/10/2020  - A porta da impunidade (ou do descontrole) no Tribunal do Júri
 
Martha de Toledo Machado, membro eleito do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça do MP-SP. Artigo veiculado no site Conjur.

O Supremo Tribunal Federal recentemente noticiou que, por maioria de votos, a 1ª Turma decidiu contra lei expressa, aparentemente acolhendo inconstitucionalidade do artigo 593, III, "d", do Código de Processo Penal, que permite anulação do veredicto do júri popular, quando a decisão for manifestamente contrária à prova dos autos. O preceito expresso de lei está em vigor há 70 anos e sua constitucionalidade estava consolidada há muito tempo no próprio Supremo Tribunal Federal, por decisões de ambas as turmas, prolatadas depois da vigência da Constituição de 1988 e da reforma processual de 2008. Não alcançamos a razão da mudança da orientação consolidada; menos ainda, por órgão fracionário e por maioria de votos. Sempre com o elevado respeito que devotamos, e de que são merecedores, a todos os ministros do Supremo Tribunal Federal.

No debate do tema, é importante destacar que a decisão absolutória arbitrária do júri só pode ser revista uma vez, pelos tribunais compostos por magistrados. Se for reafirmada pelo novo júri, ao segundo julgamento, prevalecerá a absolvição (artigo 593, §3º, do Código de Processo Penal). Ao anular o veredicto do júri popular por manifesta contrariedade à prova, o tribunal técnico apenas sinaliza ao novo júri que a decisão anterior contrariava o ordenamento jurídico vigente. Isso não impede nova absolvição; ou seja, anulado o primeiro julgamento, o novo júri popular pode decidir conforme a consciência de cada jurado, reafirmando a absolvição.

Dessa forma, no sistema legal expresso e vigente a soberania do júri prevista na Constituição já está amplamente preservada. A circunstância parece ter sido desconsiderada pela digna e douta maioria do órgão fracionário, causando perplexidade.

O júri popular decide sobre os crimes contra a vida. A vida humana é um dos valores mais altos da Constituição Federal, se não o maior valor (CF, artigo 5º, caput). Quando arbitrária e ilegalmente o valor da vida humana é desprezado por um veredicto concreto, a possibilidade de uma única anulação do julgamento popular pelo tribunal técnico configura valoroso mecanismo jurídico legal de controle do erro, harmônico aos sistemas de "freios e contrapesos" previstos na Constituição Federal. Em resumo, se não se incide em equívoco, por essas razões é que a jurisprudência até agora consolidada no próprio STF vinha reconhecendo a constitucionalidade e admitindo a anulação do júri, por uma única vez, no caso de veredicto arbitrário, manifestamente contrário à prova.

A grande imprensa informa que, no caso concreto agora julgado, a defesa do réu teria sustentado a absolvição na "tese da legítima defesa da honra" do marido supostamente traído. Sob esse aspecto, o precedente pode representar imenso retrocesso, mormente quando todo o ordenamento jurídico moderno caminha no sentido de criar mecanismos de proteção à mulher, via de regra fragilizada dentro da relação familiar, prevendo medidas protetivas como as constantes da Lei Maria da Penha e instituindo a figura do feminicídio. E essa linha de argumento aparentemente teria sido destacada no voto vencido do ministro Barroso.

O ponto é da mais alta relevância. Não pode ser ignorado, já pela absoluta desproporcionalidade em se pretender sobrepor a suposta honra de alguém à vida humana. A propósito do tema, na década de 1940 o velho mestre Hungria pontuava que, no plano ético e jurídico, só os bárbaros podem ver a honra de alguém fixada em outra pessoa, no corpo ou no comportamento de outra pessoa; seja a mulher, o companheiro, parceira(o) no relacionamento amoroso. A verdadeira honra de toda e qualquer pessoa é um bem só dela, que nunca se pode admitir seja atingido pelo comportamento de ninguém; pelo menos no mundo civilizado. Do contrário, arriscamos condenar nossos filhos a se transformarem em potenciais assassinos em defesa de "falsa honra", que nada mais é do que simples selvageria. E arriscamos condenar nossas filhas à condição de potenciais vítimas dessa violência selvagem. Isso, entre outras hipóteses variantes da mesma barbárie, também ligadas a questões de gênero.

Kant já postulava que as pessoas têm dignidade e as coisas têm preço. A pessoa humana não é coisa e nunca se deve admitir possa ser propriedade de alguém. É torpe, vil, mesquinha e selvagem a conduta de quem reduz o ser humano a coisa de propriedade de feminicida ou de homicida (coisa, propriedade de alguém, como na repetida expressão "não é minha, não será de mais ninguém").

Em situação similar de necessidade imperiosa de preservação da vida e dignidade da pessoa humana, pode-se entrever outras hipóteses a serem atingidas pela mudança da orientação jurisprudencial. Como as de julgamento pelo júri popular de crimes contra a vida em casos de violência policial ou de violência praticada pelo crime organizado, não raro a intimidar o cidadão comum que compõe o corpo de jurados.

Nas últimas décadas, nós, mulheres e homens em exercício no Ministério Público de São Paulo e em cumprimento dos nossos deveres, temos buscado dar concretude a esses valores da Constituição Federal e da lei penal, contribuindo para a fixação da jurisprudência até aqui consolidada no Tribunal de Justiça de São Paulo e nos tribunais superiores. Nela, a tese de não configuração de excludente de ilicitude por suposta "legítima defesa da honra" em casos de feminicídio/homicídio. Se não consensuais, os entendimentos aqui expressados parecem-nos firmemente majoritários dentre os membros do MP-SP; e têm sido constantes nas recomendações da Corregedoria-Geral do Ministério Público e demais órgãos da administração superior, no exercício das respectivas parcelas do dever legal do órgão acusatório.

Não é demais ressaltar que o processo penal comporta a expressão de outros dois direitos fundamentais distintos e que apenas aparentemente se contrapõem: o direito à liberdade e o direito à segurança. Para promoção da segurança como direito fundamental de todos, o processo deve viabilizar a concretização do Direito Penal, especialmente nos crimes contra a vida. Sem o que o Direito Penal não funciona como mecanismo real; em outras palavras, é desmoralizado se não der a resposta prometida em lei. A ineficiência dos instrumentos postos à disposição da sociedade para o combate à criminalidade coloca em risco direitos e garantias fundamentais, já por promover e estimular a "justiça com as próprias mãos".

Preocupa-nos sobremaneira a possibilidade de perda do mecanismo de controle do erro e arbitrariedade das decisões do júri existente na lei processual penal, que parece modesto e observador da soberania do júri prevista na Constituição, quando sopesado à magnitude do Direito Constitucional à vida no Estado democrático e ao princípio da dignidade humana. A falta de mecanismo de freios e contrapesos pode vir a representar porta aberta à impunidade de gravíssimos crimes, em comprometimento dos altos valores republicanos.

(Colaboraram: Tereza Cristina Maldonado Katurchi Exner, Jorge Assaf Maluly, Motauri Ciocchetti de Souza e Pedro Henrique Demercian)


Voltar


comente/critique essa matéria

 

 Confraria do Júri - Rua 6, s/nº, CPA - Cuiabá/MT