::Confraria do Júri::

 
 

 

      

Enquete

Você é a favor da ampliação da competência do Tribunal do Júri para outros crimes seguidos de morte?
 
Sim, para qualquer crime doloso seguido de morte.
Sim, com exceção do estupro seguido de morte.
Não. A competência do Tribunal do Júri deve permanecer a mesma.
Não tenho opinião formada.

 
Ver resultados
 
  
  
     Artigos
 
02/02/2018  - Absolvição por clemência
 
Por César Danilo Ribeiro de Novais, promotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso. Presidente da Confraria do Júri.

Segundo o princípio da plenitude da defesa, o acusado tem direito à presença em todos os atos do processo, pode apresentar sua autodefesa pela via do interrogatório e deve ser defendido por um defensor constituído, nomeado ou público. Ainda, pode se valer de argumentos jurídicos e extrajurídicos para o convencimento dos jurados acerca de suas teses no Tribunal do Júri.

Diante de uma defesa plena e completa, os jurados decidem de forma sigilosa e imotivada, com soberania, após a comunicação argumentada das partes em plenário. Como membros do povo, podem, inclusive, absolver por clemência ou qualquer outro motivo de foro íntimo. Esse raciocínio também é decorrência lógica da obrigatoriedade em formular o quesito absolutório genérico(1), ainda que haja tese única da negativa de autoria.

Como ensinou Roberto Lyra: "O Júri decide por sua livre e natural convicção.”(2)

Em razão da substância democrática e soberana do Tribunal do Júri, os jurados, acometidos pelo sentimento piedoso, podem conceder o perdão ao acusado(3).

Podem, mas não devem!

Entre o poder e o dever há uma distância olímpica. O tema está umbilicalmente ligado à ética da responsabilidade(4). Sabiamente, Mário Sérgio Cortella ensinou que “Ética é o conjunto de valores e princípios que usamos para responder a três grandes questões da vida: - 1 - quero?; - 2 - devo?; - 3 - posso? Nem tudo que eu quero eu posso; nem tudo que eu posso eu devo; e nem tudo que eu devo eu quero. Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é ao mesmo tempo o que você pode e o que você deve”(5).

Nesse contexto, a liberdade do jurado não se resume a poder e querer, mas sobretudo a dever. Ainda que queira e possa, a ninguém é devido fazer favor com o chapéu alheio, muito menos com o sangue de outrem. O jurado não deve tingir as mãos com o sangue da vítima e, assim, tornar-se cúmplice da impunidade. Nenhum membro do Conselho de Sentença detém procuração moral do cadáver ou da família pranteada para a concessão de perdão.

Como diz Shakespeare pela boca do príncipe de Verona, na peça “Romeu e Julieta”, “a clemência seria assassina, se perdoasse os que matam”(6).

Não se deve esquecer que a regra de quem ataca a vida é a de receber a justa reprimenda penal. A lei já previu as situações em que a pena deve ser majorada, minorada ou arrostada. A solução, portanto, está delineada no Código Penal. Se o agente atuou por relevante valor moral ou social ou, ainda, sob o domínio de violenta emoção logo em seguida à injusta provocação da vítima terá a pena reduzida. Se agiu acobertado por causa excludente de ilicitude ou culpabilidade, será absolvido.

As soluções extralegais dadas pelos jurados desprestigiam a ordem jurídica, a vida e a justiça. Além disso, geram desassossego na comunidade e descrença no cumprimento do pacto social, por conta de flagrante insegurança jurídica. Há risco concreto de exercício da (in)justiça com as próprias mãos e, assim, violação do monopólio da jurisdição.

Vale a oportuna advertência de Rui Barbosa, lançada nos idos de 1892: “Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação”(7).

O ônus da liberdade é a responsabilidade. Responsabilidade é a capacidade de responder por. Responder é assumir as consequências dos atos praticados ou até mesmo omitidos. Afinal, o ser humano faz suas escolhas e deve responder por elas. A punição é uma das formas de reconhecer a dignidade humana no agente criminoso. Animais é que são irresponsáveis.

No uso do livre arbítrio, ao optar pelo ataque à vida é de rigor que se reconheça a responsabilidade de quem assim procedeu na medida de sua culpabilidade. Na verdade, ninguém(8) condena o acusado a não ser ele próprio, quando lançou mão da violência letal. Os jurados simplesmente se limitam a declarar, pela votação aos quesitos, sua conduta. Se, segundo a legislação penal, essa conduta importa na aplicação de pena, é ele próprio que se autocondenou. E, sendo humano, dotado de dignidade e responsabilidade, deve responder pelo mal praticado. Em suma, a pena dignifica sua humanidade e eventual desresponsabilização depõe contra a própria dignidade humana.

O Tribunal do Júri é instrumento de tutela da vida. É instância de defesa social. É órgão distribuidor daquilo que é devido a cada um. Não pode, por isso, ser desvirtuado com absolvição injusta e ilegal à custa de sangue alheio e menoscabo do direito à vida. Nessa mais Alta Corte de Justiça, no que se refere aos crimes de sangue, não há espaço para que se fustigue o direito à existência.

Se há provas acima de qualquer dúvida razoável, a condenação se impõe; se não as há, é caso de absolvição. Não é justo por isso mesmo ser indulgente com quem não foi, quando ofendeu a vida. Ou seja, o perdão, se concedido, ocorre em prol de culpado, pois ao inocente se faz justiça. E a indulgência pela ação cometida significa injustiça em duplicada: primeira, a sofrida pela vítima a ser tolhida pelo direito de existir; e, segunda, pela falta de punição ao mal perpetrado.

Valem, por oportunas, as palavras de Afrânio Peixoto: "O mal do Júri é que desmoraliza a Justiça, dando a insegurança social e a tendência à barbárie, de cada um se defender. (...) Cada criminoso desculpado: multidão de culpados em perspectiva"(9).

Não se pode negar que justiça é dar a cada um o que é seu. Daí que o direito de quem violou a norma “não matarás” é receber a pena na medida do que fez. E a aplicação e execução desta são deveres do Estado. Se a ação do homicida produziu injustiça, a ação do jurado deve produzir justiça. É o cumprimento do dever de proteção da vida. Nenhum travesseiro é mais confortável do que a consciência limpa e a sensação de dever cumprido. O jurado deve repousar a cabeça nesse travesseiro e jamais em qualquer outro, muito menos naquele manchado por respingos de sangue da vítima.

Bem por isso, o jurado, por dever de consciência, e tendo sempre a parcela de responsabilidade no destino da comunidade em que vive, deve palmilhar o caminho da responsabilização do sujeito que maltratou o direito à vida, a fim de que receba a pena justa, fixada em lei.

É importante lembrar a lição ímpar de Alexis de Tocqueville: “O júri ensina a cada homem não recuar diante da responsabilidade de seus próprios atos. (...) Vejo-o como um dos meios mais eficazes que a sociedade pode utilizar para a educação do povo. (...) Assim, o júri, que é o meio mais enérgico de fazer o povo reinar, também é o meio mais eficaz de ensiná-lo a reinar.”(10)

Portanto, ainda que queira e possa absolver por clemência, o jurado não deve assim decidir. A ética da responsabilidade exige postura firme e austera de reafirmação do direito à vida e de cumprimento da ordem jurídica com a censura ao autor da ação mortífera. Desculpá-lo significa tirar-lhe a culpa pelo mal praticado à revelia da memória da vítima, da dor da família enlutada e da coesão social. O perdão ao homicida faz do jurado apóstolo da impunidade e profeta de assassinatos. Absolver, ainda que haja raiva (11), e condenar, mesmo que tenha dó, são faces da mesma moeda cujo lastro é o cumprimento do dever.

-----------------------

1 - Assim rezam a doutrina e a jurisprudência dominante. Particularmente, ouso discordar, cujas razões estão expostas no texto “O jurado absolve o acusado?”.

2 - BARBOSA, Ruy. O júri sob todos os aspectos. Org. Roberto Lyra Filho e Mário César da Silva. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito, 1950, p. 15-16.

3 - O Superior Tribunal de Justiça está a decidir exatamente essa questão no Habeas Corpus n.º 323409. Vale deixar registrado que a Sexta Turma admitiu a absolvição por clemência no Habeas Corpus n.º 350895.

4 - Vide WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. 4.ed. São Paulo: Cultrix, 1998.

5 - CORTELLA, Mário Sérgio e BARROS FILHO, Clovis de. Ética e Vergonha na Cara. São Paulo: Editora Papirus, 2014.

6 - NEVES, José Roberto Castro. Medida por medida: o direito em Shakespeare. 5 ed. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2016, p. 124.

7 - BARBOSA, Rui. O Dever do Advogado. São Paulo: Martin Claret, 2010.

8 - Nem jurado, promotor ou juiz.

9 - PEIXOTO, Afrânio. Criminologia. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1953.

10 - TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na américa, leis e costumes. Livro I. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 321-322-323.

11 - “Absolver com raiva” porque, apesar da convicção moral pela culpa do acusado, não houve comprovação por elementos probatórios suficientes da mesma; “condenar com dó” porque, apesar das condições pessoais do acusado passíveis de piedade, a aplicação da pena é medida necessária para a reafirmação do direito e defesa das expectativas sociais.

Voltar


comente/critique essa matéria

 

 Confraria do Júri - Rua 6, s/nº, CPA - Cuiabá/MT